SAUDADE DA MÃO


Penso na frase ostentada como uma maravilhosa qualidade na embalagem de maçãs da Turma da Mônica: SELECIONADO E EMBALADO SEM CONTATO MANUAL. Saudade da mão. Penso que o primeiro Panetone que vi no mercado esse ano deve ter sido em Outubro ainda. Setembro, saudade. Penso nos preços do Hortifruti que agora ficam numas plaquinhas digitais assustadoras e não mais em papeizinhos comuns situados na base das prateleiras. Saudade dos papeizinhos comuns na base. Penso na última vez que terei comido uma maçã com realmente gosto de maçã. Tento pensar na última vez em que tenha visto uma maçã feia na vida. Saudade das maçãs feias. Penso nos 5 segundos que o Youtube me rouba várias vezes por dia até que eu possa PULAR O ANÚNCIO da Gisele Bündchen vestida de noiva em 300 poses diferentes, da Gisele Bündchen me aconselhando a usar Oral–B 3D White, da Gisele Bündchen sendo mais feliz que qualquer um de nós em todo tipo de ocasião e cenário e penso em todas as janelinhas VOE COPA AIRLINES que me perseguem em todo lugar porque uma vez pesquisei um preço de passagem na CopaAirlines. Saudade de não ser perseguida por ter procurado uma vez a CopaAirlines. Penso que lindo seria um boicote nacional a todos os produtos que nos roubam 5 segundos até nos concederem a graça de poder PULAR O ANÚNCIO quando na verdade eles sabem que o que queremos ver é outra coisa. Saudade de ver outra coisa. Saudade dos meus 5 segundos. Penso em quantas casas no campo poderíamos comprar por ano só com os centavos de troco que o taxista resolve não dar. Saudade de dar na cara de um taxista. Penso que eu gostaria que o primeiro da lista do boicote nacional imaginário fosse o macarrão Barilla, segundo o qual, com ele, todo dia é domingo. Saudade do macarrão Renata. Penso em quando o telefone da minha casa era 457-1153. Penso em como foi esquisito quando entrou um 2 na frente do 457-1153. Penso no novo 9 que entrou no número dos nossos celulares e penso que eu não consigo falar meu número com o novo 9 porque o novo 9 não cabe na musiquinha habitual de uma pessoa humana falar o seu número de celular, e eu ainda sou uma pessoa humana, e ainda não me acostumei com o novo 9 nem fui capaz de criar uma nova musiquinha que inclua mais um 9 em seu enredo. Penso que logo logo já vou ter uma nova musiquinha acostumada com o novo 9 e vou falar meu número com o novo 9 como se ele sempre estivesse estado ali. Penso no dia em que nossos celulares terão 12 dígitos. Penso, quando isso acontecer, se vou continuar sabendo meu próprio telefone de cor. Penso em quantos telefones de amigos eu ainda sei de cor. Penso em mim num futuro não tão distante, acordando cedo e abrindo o jornal e lendo o obituário da última pessoa viva a saber de cor o telefone de todos os seus amigos, assim como um dia li o obituário da última sobrevivente do Titanic, que, a propósito, viveu seus últimos anos sustentada por Kate Winslet e do Leonardo DiCaprio. Saudade da Kate Winslet. Saudade de ser um violino no Titanic. Penso no termo de responsabilidade que minha amiga grávida teve que assinar para entrar num avião, se comprometendo a pagar alimentação e hospedagem aos outros 247 passageiros do vôo caso a gravidez prejudicasse de alguma maneira a pontualidade da Cia Aérea. Saudade de poder ficar grávida sem ter que alimentar e hospedar outras 247 pessoas também. Penso no novo aplicativo engraçadinho que constrói frases que você diria caso você dissesse. ”What would I say?” Saudade de say the things that I would. Penso no novo aplicativo da linha Fuck-finder que me foi demonstrado ontem: quando você Like a pessoa e a pessoa Like você, dá MATCH. Saudade de quando Like dá mete. Penso no profundo mau gosto das máscaras de Amarildo (!) (?) distribuídas no show de Caetano Veloso e Marisa Monte quarta passada no Circo Voador. Saudade daquilo que é feito com tempo. Penso na nossa gradual perda de sensibilidade na vida. Penso em quantas coisas com as quais lidamos todos os dias ainda podem ser tocadas com a mão. Saudade das coisas que tocávamos com a mão. Saudade da mão.


Keli Freitas é atriz, dramaturga e colunista do ORNITORRINCO.
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*Foto do topo: arte sobre foto da Taylor Wessing.

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