A previsão do tempo de hoje até domingo na cidade do Rio de Janeiro é de sol com pancadas de chuva durante o dia inteiro, com probabilidade de um céu aberto, mas somente na manhã de domingo. Pois neste final de semana se encerra mais uma edição do Tempo_Festival, evento internacional de artes cênicas que acontece todo ano aqui na cidade, movimentando a cena teatral com espetáculos, debates, processos, encontros e ocupações. Desde a primeira edição faço questão de conferir o que a curadoria do Tempo selecionou para a programação. De todas as coisas que vi nessa temporada, quero falar aqui de duas peças estrangeiras, sem cair no perigo de fazer uma crítica do trabalho, mas sim uma reflexão à partir deles.
Devo confessar que nunca tinha ouvido falar desses dois grupos, fui totalmente de olhos vendados, curioso pelos títulos e sinopses descritas no programa do evento. A primeira peça é de uma companhia espanhola, El Conde de Torreifel, e chama-se "Observem como o cansaço acaba com o pensamento". Esse título me pegou direto. A segunda peça é do Irã, "Coelho Branco, Coelho Vermelho", foi escrita por Nassim Soleimanpour quando ele tinha 29 anos. Não são espetáculos inacreditáveis, não são divinos, nem alucinantes, não foram e nem têm a pompa para serem o que a publicidade gosta de nomear como o espetáculo imperdível da temporada. Entretanto algo mais raro aconteceu. Os dois espetáculos me provocaram, fui possuído por uma euforia criativa enquanto assistia, turbinaram o processador das minhas ideias.
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A maioria dos artistas que conheço estão tão
mergulhados em seus próprios Narcisos que não
conseguem perceber a grandeza de projetos feitos
sem a pretensão de se tornarem inesquecíveis, impor-
tantes, um marco na história cultural do país.
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Vamos por partes. A peça do grupo espanhol foi apresentada na quadra de basquete do Clube Militar do Jardim Botânico. Pois é, nada de teatro, palco, platéia, coxia. A própria quadra é o palco, platéia e cenário. Em cena, seis jogadores/atores disputam uma partida de basquete de três contra três. A princípio fiquei tentando descobrir se eram atores no papel de jogadores ou o contrário, porque os atores não falam, não interagem com o público, não têm ações físicas, emocionais, personagens, viradas dramatúrgicas, nada, apenas jogam basquete e quando a partida acaba – no final da peça – eles vão embora. Daí saí com essa confusão, pensando se eram realmente excelentes atores, já que cumpriram a função de interpretar jogadores de basquete com tanta eficiência. Enquanto o jogo acontecia na nossa frente, um diálogo em off entre um homem e uma mulher preenchia a peça inteira. O diálogo é uma espécie de jogo de perguntas e respostas sobre os mais variados temas, desde assuntos mais inusitados como "Você rezava para a Virgem Maria todas as noites para que quando acordasse no dia seguinte o seu dever de casa estivesse pronto?", outras mais clichês como "Acredita no amor eterno?" e até mais interessantes como "Você poderia me dizer a relação entre o conceito de Família e o conceito de um Álbum de Figurinhas?". Então são basicamentes essas duas dimensões, em uma está acontecendo uma atividade física extenuante que parece estar em conflito com a outra dimensão onde acontece uma discussão racional.
Já a peça "Coelho branco, Coelho Vermelho" tem um formato completamente diferente. O trabalho dispensa ensaios, marcação, direção e necessita apenas que seja executada por um ator ou atriz diferente a cada apresentação. No palco apenas uma mesa, uma cadeira e uma escada. O importante é que o ator/atriz não conheça o texto e não saiba nada do que acontecerá em cena. Então o ator, com o texto na mão, começa a ler e a executar os comandos ali descritos, construindo uma encenação com ações e emoções escritas pelo autor em 2010 num quarto isolado dentro do Irã (esse é um ponto a que o autor gosta de se referir). Nassim Soleimanpour é um artista multidisciplinar nascido no ano de 1981 em Teerã. Nassim estava, até o ano passado, proibido de deixar o seu país, e escreveu esta peça nestas condições – e por causa disso. A ironia e o trunfo é que esse nome, então desconhecido pra gente aqui, foi apresentado na ocasião do Festival pelo ator Fábio Porchat – o ator nesse momento com mais projeção no Brasil.
Tanto o trabalho da companhia espanhola quanto o "monólogo" iraniano têm como consistência a qualidade de seus textos e das proposições dramatúrgicas estabelecidas. Nas duas ocasiões me senti instigado a desvendar os segredos de cada criação, pensando nos signifcados, nas questões propostas e na sensação de participar de um jogo palco-platéia no qual os artistas davam as peças de um quebra-cabeça e eu tinha que resolver como encaixá-las. Em ambos os trabalhos me senti inspirado em criar, saindo das apresentações com a cabeça cheia de ideias.
Ter assistido esses dois trabalhos estrangeiros invariavelmente me fez pensar nas produções locais – mais especificamente no Rio de Janeiro – na injeção que os artistas daqui colocam no cenário cultural, quais as suas interferências e necessidades. É claro e óbvio que todo artista quer fazer o melhor que pode, e mais até do que pode, numa dedicação vertiginosa para ir além do esperado. A maioria dos artistas que conheço estão tão mergulhados em seus próprios Narcisos que não conseguem perceber a grandeza de projetos feitos sem a pretensão de se tornarem inesquecíveis, importantes, um marco na história cultural do país. O histórico cultural do Rio é tão pesado, que pensar que a cidade não é mais fértil, e que não somos os sucessores dessa história, parece tragicamente impossível, e burro, como se um lugar tivesse que ser o mesmo lugar para sempre. Ainda é possível a figura de um artista representar o pensamento e o estado de espírito de uma época? Nesses tempos em que uma banda estoura e cai no esquecimento na mesma semana, e tudo acaba sendo domesticado pela publicidade, será possível um Bob Dylan?
Fiquei imensamente vitaminado depois de ver dois trabalhos honestos e instigantes, duas demonstrações de inquietação e da vontade de experimentar narrativas e ficções. Essas duas peças do Tempo_Festival não estão interessadas em refletir sobre isso (embora talvez o Festival esteja), não estão interessadas em fincar uma bandeira no seu tempo pensando no futuro. São mais relaxadas, desencanadas, não querem ser obras-primas, nem se tornarem mais importante do que já são (e há a probabilidade de que são esses os ingredientes que fazem uma obra-prima). São criações que estão vivas pela simples razão de existir no agora. Já não é o bastante?
Gabriel Pardal é editor do ORNITORRINCO.
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