Um dia minha mãe não passou pra me pegar.
E nos outros dias também não.
O reencontro com um ídolo de infância ou adolescência é sempre difícil. Tememos que a impressão guardada por nós – geralmente de prazer e livre adesão – fraqueje e se despedace. No entanto, o medo verdadeiro é outro: se a impressão de infância não se mantém de pé, são os nossos pés que começam a bambear. Quem sou eu hoje se tudo aquilo que há alguns anos eu venerava tornou-se para mim uma grande porcaria?
Isso talvez explique meu sorriso amarelo ao receber de presente Diário do Chaves.
Meu primeiro receio foi ter em mãos um livro escrito por um fã de Chaves e Chapolin. Ou seja, um livro de homenagem. Nada disso: o livro é escrito pelo próprio Roberto Bolaños, criador dos dois personagens, entre tantos outros de uma vasta galeria. Suas páginas trazem ainda ilustrações originais da mão do próprio Bolaños. Coisa que eu nunca tinha visto. Daí em diante, não precisei de mais nada para me convencer a lê-lo.
A mão de Bolaños é econômica e certeira. Uma mão pequenina, de menino. Sob o olhar límpido do personagem Chaves, percebe-se uma criança inteligente e sensível. Atenta a tudo, observadora do mundo, conhecedora de todos os temas: amizade, amor, política, religião, pobreza, velhice, poder, história, solidariedade, doença, violência, economia, crueldade, México, esperança, lealdade... tudo está ao seu alcance. Como toda criança, Chaves aprende com qualquer coisa.
O livro de Roberto Bolaños leva a sagacidade de Chaves a outro patamar. O personagem toca sem cerimônias em temas difíceis e espinhosos – coisas que qualquer personagem de seriado infantil prefere evitar. Álcool, cigarros, abandono, despejo, solidão... No seriado de tevê, a camada dramática geralmente fica em segundo plano em relação ao humor. Já no livro, por meio de depoimentos em primeira pessoa, fortalece-se uma outra dimensão. Chaves observa, vive e comenta pequenas crueldades do dia-a-dia. Tudo para ele é importante e merece seu olhar, no entanto, por questões de sobrevivência, precisa fazer com que eventos como apanhar todo dia, passar fome e não ser notado, tornem-se irrelevantes. O leitor engole a seco.
Mesmo sendo alvo de pequenas crueldades, Chaves as enxerga com bom humor e simpatia, sempre tirando sarro de tudo. Nada mais brasileiro e latinoamericano: qual o problema do seu vizinho não lhe dar um sanduíche quando você tem fome se na hora de jogar bola vocês estão juntos? Apegado às falhas humanas do cotidiano mais rasteiro, às vezes falando do que vê, outras vezes do que vive, Bolaños/Chaves constrói uma espécie de stand-up comedy sóbria e universal, utilizando não só o espaço da vila como vivências anteriores de Chaves, como a passagem pelo orfanato.
Como acontece ao personagem principal de todo bom seriado (vide Seinfeld), Chaves frequentemente é sobrepujado pela força de seus coadjuvantes, principalmente Kiko e Seu Madruga. Diário do Chaves é uma oportunidade de se conhecer a vida interior do menino do barril, e sua história pregressa. O livro conta como ele chegou à vila, passa por temas como o tal amigo imáginario chamado Centi e a mania de Chaves dizer que mora no número oito da vila. O personagem se amplia e ganha mais dramaticidade.
Provavelmente, Chaves é o primeiro moleque de rua a ser personagem principal de algo na televisão. Isso não é pouco. É construir uma ponte afetiva até o outro, no caso, até aquele que evitamos com tanta persistência. De todos os personagens aos quais assisti na tela e me recordo, acredito que seja o mais humanista, no sentido de uma bondade quase cristã mas nada ingênua. Essa é outra faceta clareada pelo livro, como quando Chaves presta um favor a Dona Florinda e acaba usando os recentes e únicos trocados para os remédios que o carteiro Jaiminho, doente, precisa. Ou quando Chaves, com tremenda (e jocosa) consciência, nos ensina a não cultivar o ódio:
Os espanhóis de hoje não são mais aqueles que nos conquistaram. Portanto, não devemos odiar alguém pelo que seus antepassados fizeram. Ou seja: é como se o Kiko se odiasse porque seus pais o fizeram tão feio.Arauto do atraso do continente, Chaves consumou a façanha de criar um representante universal baseado num dos piores fenômenos próprios da América Latina: a mendicância. O conteúdo do seu livro-diário mostra que, a despeito de vantagens ou desvantagens geográficas ou econômico-sociais, a capacidade aguçada de imaginação e e a observação frutífera do mundo não escolhe lugar para se fecundar.
Muitas vezes, gostamos de uma leitura por ela reafirmar ideias que já temos. Sempre gostei de Chaves, não seria nada estranho gostar também do livro de Bolaños. Felizmente, seu texto não foi apenas uma confirmação do meu gosto. Lendo o livro, algo de Chaves se ampliou. O reencontro foi além do esperado. Obrigado, Bolaños
Leonardo Villa-Forte é autor do livro O explicador, da intervenção urbana Paginário, do projeto de literatura e arte visual MixLit - O DJ da Literatura e colaborador do site ORNITORRINCO.
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