Não sei porque uma matéria de 2011 da BBC sobre o relacionamento dos pássaros caiu no meu teclado. Bem, a notícia diz que aves do mesmo sexo têm relacionamentos tão estáveis quanto os casais de aves do sexo oposto. Foi aí que eu fiquei com inveja dessa vida de viver e não da vida de estar.
Vida de viver te deixa carregar aquela água na peneira do Manoel de Barros. Libera o uso dos sentimentos em qualquer direção. Aproxima a curva da reta. Sabe que a experiência estética desinteressada do Kant é a chave mágica para o homem aprender a relacionar-se.
Reviro os bolsos do casaco, agito a bolsa, descubro a mesa cheia de papéis. A chave mágica não está em canto algum. Você já imaginava. Eu não tenho a chave mágica. Dói escrever, assumir. A estética desinteressada do Kant não é indiferente ou passiva. É livre da consideração de vantagens ou desvantagens, da subordinação a desejos sensoriais ou conceitos morais, políticos, religiosos. É a contemplação desarmada.
Ora, como cavar um espaço para a contemplação desarmada em 2014? Jogando a arte de lado: o vizinho retribui agrados pensando no futuro, a amiga tem as senhas do marido, o colega de trabalho confere as minhas planilhas para enfiar o dedo nos meus olhos. E quando um desconhecido sorri às sete e meia de uma manhã resfriada, do outro lado do banco do metrô, eu penso: não existe jantar de graça.
Essa vida de estar possui um problema, ela acaba. Enquanto a vida de viver segue na saudade das nuvens. Ela acaba porque é impossível você estar uma vida com o marido que a sua tia adora. Acaba porque você pode pirar de tanto esbarrar na cor do ano definida pela Pantone, a Radiant Orchid 18-3224.
Eu quero muito uma vida de viver, mas só o querer não basta. É preciso aprender a sentir. A encontrar a cartilha certa. A pessoa que falará com todos os seus fios de cabelo, baço e terminações nervosas. Sinto alegria pelos casais de pássaros do mesmo sexo. Eu só não tenho a chave mágica. Eu tenho todas as armas do mundo e rezo pela estética desinteressada do Kant.
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