Eu tenho as minhas suspeitas. Não são muitas, não sei se válidas, mas elas estão aí, colorindo a matéria e a minha consistência em liberdade com o meu fim, objetivo maior de estar, existir, em outras palavras, construir memória! Respondendo a pergunta “existir: a que será que se destina?”, diria: existimos para lembrar. O destino da existência é lembrar. De maneira que a matéria em si mesma, sem memória, não existe.
Isso me lembra o filme espanhol “Princesas” lançado em 2005. Resumidamente, a história se passa na Espanha de uns 15 anos atrás, quando se vivia o grande boom da imigração. Todos queriam fazer parte do sonho europeu do “unidos venceremos”. Uma grande pangeia fundacional da civilização, idealizada por Jean Monett, que mais tarde se converteu em mais um Titanic do milagre neoliberal. É nesse contexto que duas mulheres, uma espanhola e outra salvadorenha, se encontram. A primeira, uma prostituta que esconde da família sua profissão, passa o filme refletindo sobre a sua condição humana ou desumana, enquanto que a outra, recém chegada ao velho mundo, encontra na prostituição uma forma de alcançar o seu propósito primeiro: melhorar as condições de vida do seu filho que ficou em El Salvador. Nada muito original, fato. Mas Aranoa, o mesmo diretor de Lunes al Sol, consegue o ponto justo para nos fazer refletir sobre coisas bem importantes e caras ao amanhecer de todos os dias, entre elas, a saudade e o existir.
Em um dos diálogos do filme, que reproduzo abaixo, está uma das reflexões mais interessantes sobre o existir com que tive contato nessa minha curta existência:
Espanhola: Você sabia que aqui é o lugar em que o mar é mais importante?
Salvadorenha (desconcertada): Aqui não tem mar.
Espanhola: Por isso mesmo. É exatamente por isso que aqui ele é tão importante, pois aqui é onde mais se pensa nele. As coisas não são importantes porque existem. Elas são importantes porque se pensam nelas. Como o teu filho que não está aqui, mas em quem você pensa todos os dias, não é verdade? Por isso ele existe. Porque você pensa nele. Minha mãe sempre me diz que existimos porque alguém pensa na gente e não o contrário.
Fim de ano, momento que a gente aproveita para sair de férias, espairecer, descansar e, outras vezes, retomar contatos antigos, com aqueles que nos lembram a passagem de nossa existência. Dessa vez resolvi visitar minha avó em Teresina, depois de oito longos anos de ausência. A casa dos meus avós é parte fundamental da minha infância, das minhas lembranças e, portanto, do meu existir. Aqui construí parte da minha memória que, como um motor, me faz seguir adiante em busca de novas histórias a compor os futuros anos de existência.
Professora de literatura da Universidade Federal do Piauí, minha avó sempre foi uma contadora de histórias. Acredito que o seu maior prazer se realizava em passar pelo menos uma meia hora relatando fatos do passado, anedotas, encontros, situações as mais diversas, que a faziam soltar umas boas gargalhadas e se entregar num bem bonito sorriso verde: uma conjunção plena de boca e olhos.
Faz mais ou menos uns sete anos que a diagnosticaram com Alzheimer. No nosso último encontro, ela insistia em me levar para conhecer toda Teresina. Me apresentava lugares caducos de tão familiares para mim, e eu, surpresa, lhe insistia: “vó, eu já conheço aqui, não lembra? Passei a minha infância vindo aqui te visitar. Todas as férias!”. Passamos uns cinco dias brincando de “Genius”.
Ao decidir vir aqui, já sabia que a doença a tinha transformado. A mulher das histórias havia dado lugar a da opacidade. Não que ela hoje tenha uma fisionomia soturna ou sombria. Não! Aqueles olhinhos verdes, que combinavam tão bem com o seu sorriso, continuam aqui. Sorriem pra mim toda vez que me vê. Acho que seus olhos buscam na minha íris respostas. Não sei se as encontram, mas ela sorri. Joga beijo. E eu devolvo tudo, tudinho. Ela é matéria. Mas uma matéria que vive, talvez, à sombra de uma plena existência. Faltam-lhe as lembranças, suas referências. Ela é, mas não está.
Da sua extensa biblioteca, o dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete, publicado em 1974 e editado pela Editora Delta, me diz que memória é substantivo feminino. Trata-se da faculdade de conservar a lembrança do passado ou da coisa ausente; reminiscência; rememoração, lembrança, recordação; fama, nome, crédito, reputação; etc. A lista é grande. Uma definição mais atual encontrei no dicionário online Michaelis: faculdade de conservar ou readquirir ideias ou imagens. Gosto especialmente do significado abstrato proveniente da psicologia. Ele explica que a memória é a capacidade de qualquer ser vivo em aproveitar-se de experiências passadas, de forma que passam a ter uma história, sendo essencial para o aprendizado em geral: motor, emocional, verbal, consciente e inconsciente.
Segundo um artigo que encontrei na internet, a etimologia da palavra memória vem da palavra grega Mnemosyne, que dava nome a uma deusa grega responsável pela função memorialística. O poço de Mnemosyne tinha a capacidade de fazer os mortos que de suas águas bebiam relembrar suas vidas, enquanto que o poço de Lethe tinha o poder de fazê-los esquecer. Assim, a ação de lembrar seria a consciência de si mesmo, daquilo que permanece no espírito. Uma instância inventiva, meditativa e reflexiva, usada para compor uma unidade e de certa forma uma tentativa de imortalização.
Ao perder a capacidade de lembrar, ao desaparecer as nossas memórias, acho que morremos um pouco. É triste. Sem dúvida. Ver a minha avó assim também é triste. Vim até aqui, Teresina, rever minhas memórias, minhas referencias, minha história e aprender. Enquanto eu mergulho, sedenta, no poço de Mnemosyne, descubro que a minha avó, por alguma razão que desconheço, caiu irremediavelmente no poço de Lethe. Provável, não foi um ato voluntário. E existem coisas que sucedem com a gente que não são mesmo voluntárias. Acho que ela tropeçou sem querer e caiu.
Azar? Destino? Não! Eu penso que é outra coisa. Nosso destino é existência e a existência se destina à acessar a memória que vamos tecendo durante a nossa vida. Eu lembro da minha avó, por isso ela existe. Como o mar do filme de Aranoa, a sua ausência a torna ainda mais importante para mim. Mais presente, mais viva, mais existência. Eu a vejo e me lembro de todas aquelas histórias que ela me contava ao cair da tarde na varanda da sua casa. Eu estou aqui com ela, lhe jogo beijos e contamos histórias uma para a outra através dos seus olhos verdes e dos meus, herdados dela. Olhos que sorriem um para o outro e se comunicam. Falam, dizem, lembram.
Em Teresina se bebe cajuína. A cajuína, néctar de caju cozido, reflete na minha retina a minha memória. Bebo. Lembro e existo. Penso. Lembro e a minha avó existe. E éramos olharmo-nos intacta retina. A cajuína cristalina em Teresina.
Bruna Nunes é doutoranda em comunicação.
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