DO AMOR, ALGUNS PENSAMENTOS


Nota inicial: Tenho dificuldade para escrever textos em tom de denúncia; primeiro, porque apontar os erros alheios me parece uma tendência atual que mais inviabiliza debates do que promove transformações, mas, principalmente, porque considero essa postura uma fuga de si mesmo. Desejo que essa crítica se faça de modo que eu não me esqueça dos sapatos que também calço. Em outras palavras, as de Caetano — que já me denunciam — Neguinho, que eu falo, é nóis.

O Rio de Janeiro vive um tempo terrível, governado por homens interessados em sua potência de cidade-mercadoria. O lugar, enquanto ocupado por pessoas reais, isso é, de uma dimensão que vai além de um cartão postal, se desintegra. Os discursos de melhorias são convincentes para muitos, a mídia transmite um incrível projeto de revitalização, há obras por todos os cantos e um brilho no olhar daquele que brinca de Lego com o território alheio, Dudu. A cidade parece guiada por um ditadura consentida. Muitos reclamam da desorganização, do caos, do trânsito — que é o terceiro pior do mundo —, da violência e da corrupção. Entre as queixas, às vezes escorrem soluções.

Uma vez um garoto de rua tentou entrar sem pagar no ônibus que eu estava. O motorista violentamente o mandou sair, passageiros concordavam, então, o garoto anunciou que tacaria pedras, era um ônibus com ar-condicionado e janelas de vidros grossos que não se quebrariam com a pedra, todos sabiam disso, mas o garoto expulso só tinha esse gesto para se auto-afirmar e sua ousadia era suficiente para amedrontar. Ele tacou as pedras, todos faziam caras de horror, nada aconteceu, nem rachaduras, e prosseguimos a viagem, uma senhora chocada dizia "Mas como pode? Não tem ninguém, nem uma fiscalização, eles fazem o que querem". Ela sentia falta da repressão policial. Obviamente eu não usaria essas palavras, só queria uma proteção, só queria que as coisas permanecessem nos seus lugares. É atendendo a esses pedidos que a polícia começará a fiscalizar ônibus que saem da Zona Norte carioca em direção às praias da Zona Sul. Quem paga imposto alto e quem veio diretamente da Europa conhecer nossas maravilhas não pode sofrer a violência de arrastões. Nossos governantes sabem o que fazem e nossa população parece saber o que quer.

Uma história de amor não deveria ter nada a ver com isso, mas toda vez que assisto a série do canal Multishow chamada Do Amor me pergunto: Quanto vale essa vista?

A série conta a história de Lulu, uma fotógrafa que busca o amor no Rio de Janeiro. Na primeira temporada ela se apaixonou por Pio, um jovem professor de filosofia que está terminando sua tese de doutorado, mas já mora em um apartamento incrível com vista para a Lagoa. Eu, enquanto estudante de filosofia, me impressionava. Como a maioria dos meus amigos, não tenho grana para bancar nem o aluguel de uma kitnet. Até aí era apenas uma questão curiosa, mas normal, a ficção está cheia de personagens que vivem de modo misterioso e não há nada muito grotesco na licença poética que ignora a bolha imobiliária do Rio de Janeiro.


Porém, a segunda temporada mostrou o tamanho da relevância dos territórios da série. A beleza da Zona Sul não é apenas um fundo cenográfico, é o único lugar possível para originar e justificar as vivências daqueles personagens. Porque na segunda temporada, talvez cansados de circular apenas do Leblon até Ipanema, os personages sobem o morro para realizar uma ocupação artística. Mas a ocupação não ocorre em um morro qualquer, é o Vidigal. É uma favela pacificada e com uma das mais belas vistas da cidade. A série faz uso disso, os primeiros episódios em que aparece o Ocupa Vidigal, a câmera mostra mais o mar do que os barracos. Além da ficção, o mercado também faz uso disso, bares, albergues e casas noturnas começam a se tornarem populares nos morros da Zona Sul carioca; agora que há a pacificação, é possível dançar Get Lucky e ainda desfrutar uma vista privilegiada sem correr riscos. O privilégio torna a vida mais cara, centenas de moradores precisam procurar outro lugar para viver, alguns pagam o preço da paz com a própria vida e outros ganham muitos likes no Instagram. Do Amor me faz perguntar quanto vale, porque a beleza nunca é gratuita; a beleza da cidade e a beleza de Lulu tem um preço, mas ninguém parece precisar pensar sobre isso.


Há uma cena que resume o motivo deste texto. Uma personagem ao tentar convencer Lulu a participar da ocupação diz "De início eu achei meio árido, seco, mas também faz parte da nossa cidade, né? É necessário". A favela enquanto compreendida como uma parte da cidade que precisa ser visitada, mais ainda, ajudada, é o local propício de uma missão civilizatória, a mesma que começou no Brasil em 1500 e que ainda persiste. Essa fala confessa essa crença, os produtores da série apostam em um público e ignoram que a criatividade carioca permite que a TV à cabo suba até a favela.

Voltando ao ônibus, eu também não fiz nada, não me ofereci para pagar a passagem, não argumentei com o motorista, não defendi o garoto ou me defendi. A única coisa que eu desejava era que o conflito acabasse logo para eu seguir com minhas obrigações sem precisar lidar com o que eu não via solução.
Mais cedo ou mais tarde, por compaixão ou justiça, a pedra nos atinge.


Taís Bravo está no mestrado em filosofia na UFF. 
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* Imagem no topo: Accident Series by Zeren Badar

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