Você quer trabalhar dentro ou fora? Sozinha ou com gente? De dia ou à noite? Com hora certa ou não?
Eu era criança e meus pais iam perguntando na volta do sítio pra casa, nos fins de tarde de domingo, antes do jogo do Botafogo no rádio acabar com qualquer conversa. Eles perguntavam e eu pensava bem. Dentro. Com gente. De dia. Ou não. Cada resposta eliminava na hora mil possibilidades, e ainda assim eu não saberia hoje dizer o que queria ser quando criança — fora Chacrete, claro. Sonho infantil rejeitado pelo pai que insistia: em silêncio ou falando? Com ou sem um chefe? Com ideias ou com as mãos?
Estava ali a semente do conceito que hoje domina o mundo: trabalhe com o que você ama e será feliz.
Meus pais tinham razões pra defender a ideia. Nos anos 70 meu pai largou, no penúltimo período, o curso de Direito e uma sala com seu nome no escritório dos meus avós. Decidiu cursar Comunicação. Já parecia ousado, mas a coisa ficou séria mesmo quando ele descobriu que queria trabalhar dentro e fora, com gente e sozinho, de dia e à noite, sentado e em pé, com hora certa e não. Foi aí que ele desistiu de vez da vida universitária, aguentou meu avô mudo por um ano inteiro e virou diretor de cinema. Muito antes disso ele conheceu a minha mãe, que foi mais insistente e garantiu um diploma de jornalista — que ela nunca foi buscar, já que também quis trabalhar dentro e fora, muito mais com gente, de dia e à noite, bem mais sentada que em pé, a toda hora, e assim acabou se tornando produtora de cinema.
Estava ali então eu, e aparentemente nenhuma escolha profissional seria um problema, excluindo, claro, Chacrete, primeira vocação e desejo. Cresci achando normal não ter salário, não ter emprego, não ter horário, e embora morresse de vergonha quando meu pai ia me buscar na escola de bermuda e Havaianas em plena terça-feira, logo aprendi a amar a vida mais solta, as viagens, o trabalho movido por paixão, o olhar vibrante da minha mãe falando de um projeto novo.
Ainda menina a literatura me pegou pela mão e na hora do vestibular foquei na paixão: Letras. "Mas você vai viver de quê?", perguntou o irmão. Eu não fazia ideia mas sabia que isso não era assunto pros meus dezessete anos. Logo uma vocação apareceu e me tomou por inteiro: poeta e dizedora. Aprendi a dizer poemas, comecei a escrever os meus, logo tinha raspado a grana da poupança e publicado um livro. Ainda assim não tinha resposta para preencher no formulário de hotéis o item "profissão", já que com poesia eu mais gastava do que ganhava, e ganhar dinheiro do próprio trabalho é fator primordial de algo que se possa chamar de profissão. Fugi do cinema o quanto pude, por medo da obviedade, por medo da comparação, mas quando quis morar sozinha e precisava pagar contas pela primeira vez, o que eu sabia fazer era operar um Avid e montar cenas, e hoje, dez anos depois, cá estou eu. Profissão: montadora de cinema e tv.
Cresci numa casa em que não havia a menor hipótese de não trabalhar com algo que nos movesse. Quando aos 24 anos consegui um emprego que desejava há mais de um ano (e logo descobri que aquele era o trabalho mais chato do mundo), não demorei mais do que uma semana para escrever um poema* que me libertou. Pedi demissão. Isso se chama Escolha e está na raiz da questão. Eu podia me demitir daquele trabalho chato e voltar a ganhar zero reais porque morava com os meus pais e não era esperado de mim que contribuísse financeiramente na vida da casa. Podia me demitir porque meus pais acreditavam no conceito de fazer o que se ama. Eu podia escolher. E isso é poderoso e muito raro.
Tivesse eu nascido em outro país, em outra cidade, em outro tempo, outra família, outra classe social, meu poder de escolha seria consideravelmente menor. Ser uma mulher brasileira, carioca, do final do século vinte, numa família classe média alta, com pais artistas, me deu a possibilidade de ser quem eu quisesse. Isso não é garantia alguma de felicidade, mas colocou a minha vida nas minhas mãos. Nascesse eu com tudo igualzinho, só que no Irã, perderia o direito de escolher minhas roupas. Nascesse eu com tudo quase igual mas em outra classe social, eu teria trabalhado desde cedo com o que fosse possível e vocação seria uma palavra fantasiosa. Nascesse eu desse jeitinho mas numa família mais tradicional, provavelmente ter me tornado poeta seria um acinte.
Então quando se alardeia aos quatro cantos "faça o que você ama", isso é ao mesmo tempo libertador e opressor. Porque a imensa maioria das pessoas não tem tanta opção. Imagino que ouvir essa frase repetida como um slogan, como se a vida fosse simples assim, para muita gente deve soar quase como uma provocação. Em tempos de vidas tão expostas, a ditadura da felicidade, e o seu mar de rosas, pode fazer mais vítimas do que se imagina. Não vamos esquecer: escolher é luxo.
Mas a felicidade é mais democrática do que isso. Nem só de escolhas profissionais ela se alimenta. Ninguém é eternamente refém das suas circunstâncias. Quem não tem a possibilidade de decidir com o que gastar oito horas do seu dia e como ganhar seu dinheiro, ainda pode extrair alegrias de muitos outros cantos. É apequenar demais o pensamento condicionar uma vida boa a trabalhar com paixão. Ser feliz é uma escolha, e essa, dos jeitos mais improváveis, é para todos.
*O poema libertador, no ano em que foi escrito:
Maria Rezende é poeta, montadora de cinema e colunista do ORNITORRINCO.
Blog / Facebook
Marcadores:
Maria Rezende
Nenhum comentário
Postar um comentário