O PARAÍSO CAPITALISTA NÃO PASSA DE PURGATÓRIO

“As duas armas mais importantes para derrotar
 um inimigo são a lógica e a imaginação.”
- José Raul Capablanca


Lógica

Para os brasileiros e os turcos, quiçá para todo o mundo, as jornadas de junho representam o acontecimento mais importante deste ano de 2013 que se encerra. Contudo não é possível as confinar como momento histórico, uma vez que seria afixar um adesivo por demais celebratório onde ainda tão pouco foi alcançado de desejos inequivocamente despertos, mas pouco conscientes de suas vontades.

Não pretendo nem me considero capaz de traçar aqui prognósticos de seus desdobramentos. Por outro lado, sinto a tentação de incitar algumas provocações e aqui falo mais diretamente para os insatisfeitos com a mediocridade das relações humanas estagnada na percepção de pessoas como objetos e meios.
Desde os “manifestantes” (porque daqui distantes) da praça Taksim até os “vândalos” (porque aqui presentes) da Avenida Paulista, o descontentamento com o atual modus vivendi se fez escutar e, todavia não tenha existido elo claro neste sentido, estas reações populares estiveram conectadas.

A atmosfera alimentada no mundo, não me refiro primeiramente as emissões de carbono, é por demais envenenada para aqueles que ainda não abdicaram de pensar e sentir possam reprimir indefinidamente seu crescente desgosto.

A crise capitalista, tratada pela máquina ideológica do sistema como apenas um intervalo amargo da “história de sucesso” deste modo de relação dos seres humanos entre si e com a natureza circundante, vai se tornando cada vez mais ameaçadora do ponto de vista da sustentabilidade da espécie mantendo-se em pé seus alicerces lógicos: a competição enquanto espinhal dorsal da convivência e o parasitismo irrefreável das energias humanas e naturais forjado por necessidades artificiais e inconsequentes em busca do fim automatizado da incessante acumulação de bens, papel moeda e status.

Os agentes desta lógica utilizam o repetido argumento de que, a rigor, a organização e a gestão do metabolismo social estaria bem arranjada se executados os acordes do livre mercado, já que a regência da “mão invisível” harmonizaria todas as notas. Trata-se de raciocínio patético, porque o estado - além de ser parte integrante desta orquestra - nunca é dispensado quando se trata tanto de socorrer os grandes desafinados dos negócios mundiais, quanto não deixa de ser pressionado a regular e intervir em benefício de seus instrumentos, isso mesmo nos palcos da potência que hoje se arroga mestre de cerimônia e guarda-costas mundial desta partitura.

Não se trata aqui de defender elogiosamente o "Leviatã" já bastante hostilizado pelos mesmos que no fim dele mais se beneficiam, senão de também fazer observar que a rigor o cenário pregado por este esquema se constituiria numa cacofonia insuportável. Vivenciaríamos finalmente em timbres candentes a “anarquia” de sinal negativo, a qual se gosta tanta de anunciar distância com etiquetas refinadas: a barbárie.

Aqui vale lembrar que o capitalismo, não apenas enquanto prática mas também como conjunto de ideias, se erigiu em oposição direta ao poder clerical e aristocrático, sendo decisivo neste sentido a ruptura com a narrativa paradisíaca reservada ao pós-morte. O reino da prosperidade e a realização dos projetos e ambições de felicidade nutridas pelo espírito humano estaria reservado ao futuro, contudo havia de ser alcançado nesta vida.

Mas esta ladainha evidentemente não tinha potencial para ciranda. A revolução industrial veio logo mostrar que o pecado original para imensas massas, moídas nas engrenagens fuliginosas, não seria facilmente esquecido, pelo contrário, seria ainda mais severamente emulado. Destacando que os próprios algozes desta engrenagem se convenciam do prazer destas práticas - num caso categórico de sadomasoquismo - e a insuflavam como zumbis, no condicionamento de sirenes e relógios.

Mesmo que hoje o juízo corrente seja de que considerável parte da raça humana esteja distante do inferno de uma remota antiguidade, não serão os postulados que lideraram ao purgatório que poderão continuar animando a jornada. O risco imenso e evidente é que seguindo estas disposições nos aniquilemos diante da insignificância e indiferença com que estamos nos considerando, típica autofagia compulsiva.


Imaginação

Introduzi este texto com a epígrafe do enxadrista José Raul Capablanca porque para superarmos o miasma do marasmo é preciso um entendimento lógico do processo conjunto em que estamos enredados, de outra forma não será possível construir alternativas que nos leve para longe do esgotamento desta familiaridade caduca.

Mas também isto não basta, fazem-se necessárias altas doses de desprendimento imaginativo capazes de germinar novas buscas de convivência e organização social baseadas em valores que se distanciem do intercâmbio monetário insípido e aproximem o rol das ações humanas de um conteúdo sensível e não fragmentado.

Claro está que para abandonar este horizonte cinzento é também forçoso um certo grau de enfrentamento contra aqueles que nele se fiam como a um bastião de fé ou por vantagens para lá de egoístas. Este enfrentamento pode inclusive acarretar determinados sacrifícios, mas nenhuma mudança ou nascimento jamais deixou de encontrar resistência.

Se devem ser instruídos os indivíduos necessitam acima de tudo serem influenciados a se compreenderem como sujeitos originais, criadores inevitáveis de suas próprias vidas. Devem abandonar as coibições da aceitação social surgida nos modelos de êxito e felicidade estimulados e disseminados nos dias em curso pelo bombardeio de propagandas, publicidades e fofocas, além da própria impotência com que se compreendem.

Não menos importante contudo é a compreensão do outro também como sujeito de seu destino e, portanto, merecedor do olhar, diálogo e respeito em sua própria especificidade. Uma paisagem viva e plural como essa, no entanto, não pode florescer tendo como base uma escala de valores cujo o principal denominador é o saldo em conta bancária.

Freud dizia que enquanto o comportamento ético não fosse de alguma forma recompensado todos os apelos em seu benefício cairiam em ouvidos moucos. Embora os maiores problemas e desafios não sejam de ordem ética, este fundamento tácito necessita ser revalorizado no estabelecimento de nossas relações. Creio que existe um desapreço perigoso quando o entendemos como algo tomado como garantido. Aqui não se trata de semear a desconfiança – embora o alerta da espionagem em massa também tenha sido claramente soado este ano - senão de enfatizar o valor da firmeza de caráter, manifesta acima de tudo na concatenação do discurso com a prática.

Além disso o poder que vem se concentrando nas mãos de tão poucas pessoas não pode mais continuar concentrado. Não que a gravidade do problema da falta de alegria e suficiente relaxamento na vida cotidiana possa ser resolvida apenas com eficiente distribuição de renda: os sujeitos que apreciam sua liberdade estão interessados em viverem seu tempo na terra, desde o nascimento até a morte, como uma passagem fértil e não fundada numa rotina engessada e pouco criativa.

Mas é urgente impedir o alastramento de uma cultura de produção e consumo de bens extravagantes sem antes dedicar mais energia para a satisfação de necessidades elementares que ainda permanecem carências para um grande universo de pessoas. A especulação imobiliária que hoje ronda uma cidade como o Rio de Janeiro, por exemplo, poderia ser em grande medida mitigada se a casa fosse considerada mais estritamente como lar, lugar de crescimento e desenvolvimento das pessoas que nela vivem e não espaço para arrecadação de lucros por meio de aluguéis ou apostas quanto à valorização pecuniária por conta de uma procura mais acentuada no futuro. Faz-se necessário impedir a aquisição de imóveis em larga escala por conglomerados e indivíduos interessados em fazer dinheiro explorando esta necessidade tão facilmente reconhecida.

No que concerne a inventividade humana cabe a pergunta de por que afinal se produzem remédios, criam-se instrumentos, desenvolvem-se máquinas? Abandonaríamos a fabricação de medicamentos caso não fosse um negócio rentável? O mercado responde que sim quando se tratam de doenças que atingem os bolsões de miseráveis, seres que não podem arcar com o custo de desenvolvimento dos remédios. O que se procura não é atenuar a dor ou oferecer a cura a um doente, mas sim a rentabilidade financeira para acionistas.

Se cria arte para suprir uma necessidade de expressão interior ou para agradar o gosto plastificado de bandos entorpecidos e assim tornar-se detentor de direitos e louvores sobre a obra cultuada?

A atividade humana precisa ser um fim em si mesma e não meio para aquisição de dinheiro. O trabalho sem envolvimento emocional para assegurar a sobrevivência ou a ascensão social vem sendo fonte de grande parte da angústia em todas as épocas e neste momento não é diferente. Angústia que nem mesmo a mais poderosa indústria da distração pode apagar daqueles que disse pensam, sentem e, agora acrescento, acreditam no poder da generosidade humana.

Não resta dúvida de que urge assumir novas motivações e valores para nossos gestos, enfrentando as razões mecânicas, dando se necessário passos no desconhecido; abandonando o medo à liberdade, arrancando as correntes da cultura da aceitação pelo consenso impingido por via da repetição e apelo à imitação de hábitos e comportamentos que prometem triunfos e segurança. Isso contudo não se faz apenas com boa vontade no coração, senão com ações determinadas e uma potente criatividade capaz de vencer a enraizada e já viciada lógica que se defende tomando o mundo como cárcere.


Júlio Reis é poeta, escritor, jornalista e colunista do ORNITORRINCO.

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