PASSEI EM BRANCO NA BLACK FRIDAY


Não foi por acaso que, subvertendo o sentimento que preenche o espírito de todo trabalhador no último “dia útil” da semana, eu despertei nesta sexta-feira com uma anômala e cavalar dose de melancolia. Acordei com uma dor de cabeça que não poderia ter vindo da única cerveja que tomei em casa na noite de quinta-feira. Uma dor de cabeça que, aos poucos, com o decorrer do dia, foi me revelando seus reais motivos: Black Friday. Pensei que o termo me era familiar, mas de algo que existia fora do Brasil, longe o suficiente para eu não me preocupar em sair para comprar o pão do dia seguinte num mercado próximo de casa.

Embora o desejo de consumir ainda não me consuma, o Encontro – com ou sem Fátima – devastador de uma atmosfera que interfere no meu Bem Estar na Bahia, Meio-Dia, não Vale a Pena Ver De Novo, pois invade minha casa antes da hora da Malhação, como uma Joia Rara que vai Além do Horizonte com The Voice que clama por Amor à Vida. Sem pedir licença, os tais “reclames do plim-plim” me tomaram de assalto. Uma onda de merchandising fuzilou minha consciência com anúncios apelativos, todos eles falados num tom elevado, palavras vomitadas, numa sequência nervosa que não deixava faltar expressões como “Black Friday”, “desconto especial”, “não perca” e “grande oportunidade”.

Não me importei com o fato do Ricardo surtar de vez, 
não vi nada de Insinuante nos anúncios, passei o dia sem 
influências Americanas ou uma dose Extra de consumismo. 
Não houve Ponto Frio que me seduzisse.

E o melhor (ou pior, não sei): tudo supostamente muito barato. Tão barato a ponto de fazer você se sentir muito burro se não aproveitasse. Ainda assim, não dormi abraçado com meu cartão de crédito e tampouco sonhei com um novo smartphone. Não acordei me sentindo mais rico, mesmo sabendo que meu salário chegaria justamente na Black Friday. Teoria da conspiração? Se fosse, não funcionou. Ao invés de me empolgar com a possibilidade de comprar uma geladeira nova (não estou precisando) e ganhar um fogão “inteiramente grátis”, lembrei-me de ir num caixa eletrônico e programar o pagamento da 1ª conta do mês.

Não me importei com o fato do Ricardo surtar de vez, não vi nada de Insinuante nos anúncios, passei o dia sem influências Americanas ou uma dose Extra de consumismo. Não houve Ponto Frio que me seduzisse. Achei essa história de Black Friday uma babaquice e firmemente não me entreguei às vitrines dos shoppings e prateleiras dos supermercados. Ao invés de pesquisar descontos “especiais” internet afora, preferi acompanhar as piadas e comentários nas redes sociais. Trocadilhos como “Black Fraude” e frases como “tudo pela metade do dobro” bateram recordes de compartilhamento. Fiz comentário em um post ou outro e reparei que as mesmas pessoas que ridicularizavam a versão brazuca da Black Friday eram as que curtiam páginas com promoções e descontos de tênis, roupas e o escambau.

Esse termo em inglês, já incorporado pelo mercado brasileiro, foi criado pelo varejo nos Estados Unidos para nomear uma ação de vendas anual realizada sempre na última sexta de novembro, logo após o feriado de Ação de Graças. Feriado que aqui nem sequer existe. O que existe são as ofertas absurdas do tipo ganhe um desconto de até R$ 10 mil num carro novo. O detalhe é que este produto custa R$ 200 mil. Sairia então praticamente “de graça”, por apenas R$ 190 mil? Fico pensando em quantas pessoas no Brasil teriam condições de fazer esta aquisição? Pensei em pessoas do meu círculo de convivência e não consegui visualizar ninguém fechando negócio na concessionária mais próxima.

Diante desta constatação, me fiz uma pergunta idiota e óbvia: para que diabos o comércio brasileiro resolve reproduzir essa fórmula consumista americana se os descontos aqui são comprovadamente mais modestos do que lá nos States? Já que fazer promoção é fazer a galera torrar a grana que tem e a que não tem, por que não fazer a coisa direito? No fim das contas, ou no início dos gastos, o que aumenta mais? O percentual de vendas ou o nosso complexo de vira-lata? E o que diminui mais? O preço das coisas que deixam de ser muito caras no Brasil para se tornarem “um pouco menos caras” ou a nossa capacidade de perceber que estamos sendo enganados?

Enquanto acreditamos levar vantagem na troca de seis por meia-dúzia, não pagamos à vista e perdemos de vista que o grau de endividamento dos brasileiros com o sistema financeiro nacional bateu novo recorde ao final do primeiro trimestre de 2013. Segundo o Banco Central, as dívidas das famílias correspondiam, em março, a 43,99% da renda anual. E mesmo assim, somos cada vez mais estimulados a gastar. E olhe que ainda nem chegamos ao natal, época da “cereja do bolo” para os comerciantes. Pensei nisso quando fui comprar o jornal hoje cedo e, durante os 10 minutos que folheei algumas revistas perto do meu trabalho, percebi que vivo numa nação em que um dono de banca de jornal passa mais tempo fazendo recarga de celulares do que vendendo publicações impressas.

Enquanto reclamamos dos preços, das desigualdades e da miséria no mundo, um hotel de luxo na África do Sul tem uma atração especial para os seus hóspedes: a Shanty Town, que reproduz uma favela para acomodar os clientes “mais extravagantes”. Não dá para achar, portanto, a Black Friday um absurdo se hoje vivemos no mundo em que a pobreza deixou de ser um problema e virou uma mercadoria. Experimentá-la de modo realista entrou para o rol de desejos dos milionários que sonham experimentar uma pseudo-pobreza ao passar um feriado num barraco com sistema de aquecimento e internet sem fio. E o "melhor" é que a aventura pode ser parcelada em várias vezes no cartão. Embora eles nem precisem disto. É a chance de comprarem do jeito que mais gostam: “tudo pela metade do dobro”.


Gabriel Camões é palhaço, ator, poeta, jornalista e colunista do ORNITORRINCO.

*Foto do topo: Tiago Queiroz.

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