MERGULHO NA REALIDADE


Meu condicionamento físico não anda nada bem. Da última vez que testei meu fôlego ao submergir numa piscina, não consegui ficar mais do que 40 segundos soltando bolhas e encarando azulejos. Não fumo cigarro, tenho bebido cada vez menos, mas também não exercito meu corpo da forma que deveria. O sedentarismo, a asma e o peso da idade me afastam cada dia mais de um recorde antigo, alcançado em plena adolescência, quando fiquei mais de dois minutos embaixo d’água e dei uma verdadeira canseira aos meus pulmões. Dizem por aí que os recordes foram feitos para serem quebrados. Pois eu conheço um cara que uma vez ficou quatro minutos e 15 segundos mergulhado na minha frente. Fiquei nervoso. Achei que ele tinha morrido, que era uma façanha e tanto, enfim, algo extraordinário.

Até que descobri uma mulher pernambucana, chamada Karol Meyer, que quebrou o recorde mundial oito vezes do que convencionou-se chamar “apnéia estática”, nome bonito que inventaram para essa brincadeira louca de prender o fôlego debaixo d’água. A criatura foi capaz de permanecer por 18 minutos e 32 segundos sem respirar. Nesse mesmo tempo eu consigo cozinhar um pacote de macarrão e fazer um molho quatro queijos, com muito esforço e concentração. Achei uma loucura. Mas aí descobri que, entre os homens, há um médico dinamarquês que é o detentor do recorde mundial, tendo ficado 22 minutos sem respirar. O mesmo tempo que levo para caminhar do trabalho de volta pra casa.

Vocês conhecem a mulher indiana que ficou 61 anos 
sem cortar o cabelo? A criança egípcia que espirrou 
218 vezes consecutivas? Um japonês que conseguiu solu-
cionar 72 operações matemáticas em menos de 1 minuto? 

Enquanto ando pela rua retornando da labuta, gosto muito de inventar recordes. Como o americano que comeu 172 coxas de frango apimentadas de uma só vez. E o russo que arrancou uma árvore de quase 70 metros com as próprias mãos. Vocês conhecem a mulher indiana que ficou 61 anos sem cortar o cabelo? A criança egípcia que espirrou 218 vezes consecutivas? Um japonês que conseguiu solucionar 72 operações matemáticas em menos de 1 minuto? Um escritor espanhol escreveu um romance de 700 páginas em apenas um dia. Você sabia que um padre argentino celebrou 1.414 casamentos em pouco mais de 12 horas? E que uma jovem colecionadora holandesa chegou a conviver com 88 cachorros numa mesma casa? Um casal canadense permaneceu preso no elevador 64 horas por livre e espontânea vontade. E um ciclista francês pedalou de Paris até Lisboa com os olhos vendados e só caiu da bicicleta 17 vezes. Um mergulhador australiano cortou o dedo de modo proposital e entrou num tanque onde permaneceu sangrando por 04 segundos ao lado de 77 tubarões. Uma professora chilena conseguiu falar 315 palavras em apenas um minuto. E um artista chinês equilibrou uma mesa na cabeça por 13 dias, 17 horas e 49 segundos.

Na minha última caminhada eu havia inventado 73 novos recordes antes de ver uma senhora ter a bolsa arrancada violentamente por um assaltante a menos de cinco metros de distância. A minha viagem prazerosa pelo mundo imaginário das façanhas e farsas me fez lembrar outros recordes. Números e dados que não me orgulho de saber e nem de sentir na pele.

Li uma pesquisa que comprova que seis, de cada dez brasileiros, conhecem uma mulher que foi vítima de violência doméstica. Salvador, cidade onde nasci e onde vivo atualmente, tem registrado uma média de 20 homicídios por final de semana. O número de assassinatos por aqui aumentou cerca de cinco vezes nos últimos 10 anos. Curioso que o salário do prefeito também aumentou. De R$ 10 mil para R$ 18 mil, mas isso de uma só vez, no fim de 2012.

O “Mapa da Violência 2013” no Brasil, no quesito Mortes Matadas por Armas de Fogo, informa que 36.792 pessoas foram assassinadas a tiros em 2010. O número é superior aos 36.624 assassinatos anotados em 2009 e mantém o país com uma taxa de aproximadamente 20 homicídios por 100 mil habitantes — a oitava pior marca entre 100 nações com estatísticas consideradas relativamente confiáveis sobre o assunto.
Pará, Alagoas, Bahia e a Paraíba estão entre os cinco estados que mais sofreram com o aumento da violência na década.

Violência que pude constatar com meus próprios olhos enquanto caminhava de volta para casa. Gritei, corri na direção deles, mas nada pude fazer para evitar o roubo. 2014 é ano de Copa e 2016 tem Olímpiadas e enquanto dados alarmantes sobre a violência no Brasil mancham as camisas brancas e exterminam a juventude de negra que vive a rotina das cidades brasileiras, a nossa imprensa marrom dará destaque aos recordes que serão superados, batidos ou quebrados.

Mesmo com o percentual de 63% de informações verídicas, esse texto alcançou o 3º lugar num concurso de artigos sobre recordes fantasiosos. Aliás, é bom lembrar que o Brasil não existe. E reforçar para todos que não há pobreza e nem desigualdade ao nosso redor. A corrupção é uma falácia inventada pelo povo. Os políticos trabalham sete dias por semana e 12 horas por dia. E o mais importante a ser dito: esse texto nem é meu. Achei na internet por acaso enquanto procurava o significado da palavra “axioma”.


Gabriel Camões é palhaço, ator, poeta, jornalista e colunista do ORNITORRINCO.

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