PAIXÃO FA-TAL


Antes de começar esta prosa, é necessário que sejam compartilhadas duas breves informações com você, caro leitor. A primeira é que sou um canceriano nascido no dia 12 de julho com ascendente em touro e lua em câncer. Não sou nenhum expert em astrologia, mas sei que essa conjunção é o bastante para que eu tenha me tornado um sujeito nostálgico. Um belo de um saudosista, bicho quase amarrado ao passado. Sem julgamentos, gracias. A segunda informação é, mais precisamente, uma paixão que nutro há alguns anos. Por uma moça, uma mulher: Gal Costa. A própria. Somadas estas duas paixões – operação matemática que já opero há anos em minha vida – dá-se um resultado peculiarmente explosivo. Um jovem rapaz que ama o passado e é perdidamente apaixonado pela baiana que é a voz de “Fa-Tal”, disco de 1971, gravação oriunda do show homônimo dirigido por Waly Salomão.

Toda pessoa tem um álbum que tenha marcado determinado momento de sua vida. O meu foi o tal do “Fa-Tal” – colocado em uma prateleira especial, alvo de culto quase diário. Desde a primeira vez que ouvi a voz de Gal alcançando agudos inimagináveis e improvisando barbaridades que deixam qualquer ser humano em estado de incredulidade, assinei um contrato imaginário de que sempre retornaria àquela voz.

Sempre voltei, escutei de trás para frente, escutei no shuffle, escutei na alegria, escutei na fossa. Assim como na astrologia, de música pouco domino, mas você vai concordar que “Fa-Tal” é uma obra-prima. É. Pelo resultado final, pelas circunstâncias de sua execução, pela sua resistência ao tempo. Só empresto o título de obra-prima a algo atemporal, e, repito, “Fa-Tal” transcende qualquer limite.

É engraçado quando determinada coisa nos toca por uma fatia considerável de tempo. 

É como dar cama/mesa/roupa-lavada para um sentimento dentro da gente, reservando um espaço para ele, um camarote especial ao lado do nosso coração. Fiz isso com a maior parte da obra de Gal Costa, mas fiz isso especialmente com “Fa-Tal”. Não vou me atrever a pisar no campo da história, mas o disco é um emblema, símbolo ainda vivo, pedaço fervoroso de resistência artística em meio a ditadura militar brasileira. O jornalista José Simão, em uma crônica de 2005, afirma: “Sair da praia antes do pôr-do-sol era blasfêmia! E ainda por cima tinha que ir em romaria todas as noites assistir o show de Gal Costa (“Fa-Tal”)”.

Gal cantava “Como 2 e 2”, “Mal secreto”, “Hotel das estrelas”, “Sua estupidez”, “Coração vagabundo”, “Fruta gogoia”, “Maria Bethânia”, “Dê um rolê”, “Vapor barato”. Tudo com uma força cósmica, cada canção disparada feito uma bala de fogo, verso por verso empilhando eloquência. Se o caro leitor nunca tiver ouvido o álbum, faça um favor a si mesmo, escute-o. Ouça-o.



No ano passado, em um show em homenagem a obra de Waly Salomão em São Paulo, Gal Costa cantou uma música e outra do álbum – dentre elas “Vapor barato” e “Mal secreto”. “Vapor” já andava sendo revisitada no show “Recanto”, de 2011, dirigido por Caetano Veloso. Já “Mal secreto” – uma das mais letais doses de “Fa-tal” – não era cantada há um tempo. Eu não estava neste show. Apenas assisti o vídeo amador que alguém fez da platéia. “Mal secreto”, 43 anos depois de entoar pela primeira vez os versos escritos por Jards Macalé e Waly no palco do Teatro Thereza Raquel em Copacabana, hoje comandado por uma empresa de internet e TV à cabo.

Quando assisti ao vídeo de “Mal Secreto” neste show, paralisei por completo. Entrei em catatonia, não mexia pé nem mão, não conseguia esboçar uma expressão facial sequer. Game over, golpe fatal. Cheguei a trocar mensagens com um amigo ou outro também devoto da Dona Graça, tentei relatar o que sentia, mas não conseguia elaborar mais do que duas linhas sobre, não fui capaz de transformar em palavra o processo louco que se desencadeou entre o meu cérebro e o meu coração. Gal Costa, aos 69 anos, tentava alcançar as mesmas notas que sua voz dava conta de alcançar quando ela tinha seus módicos 26. Bonito, bonito, dilacerador, fatal novamente.

Como é bonito refazer um caminho, retornar a uma rota previamente traçada, tentar retornar a um momento específico da sua própria trajetória. Aquilo ali foi um movimento vital, um ato de coragem, uma mulher sobre um palco, munida apenas da sua voz, tateando por mais uma vez (e só por aquela noite) aquele espaço virtual, utópico. Não falei nada na época, só puxei meu telefone celular e escrevi uma frase no bloco de notas: a memória é uma uva passa que já foi só uma uva

Tive a oportunidade de encontrar com a Gal em duas oportunidades depois deste show. Nas duas mencionei o “Fa-Tal”. Em um ato (que beira o ridículo, aqui o leitor pode se sentir livre para zombar deste que de cá escreve) de fã desesperado, perguntei se ela um dia faria um show que tivesse o repertório inteiro do “Fa-Tal”. Queria saber se ela retornaria de corpo inteiro (e voz plena) àquele território. Gal riu educadamente do meu pedido tolo, descartando qualquer possibilidade do tipo. “Mas para quê?”.

Não sei a resposta do “para quê?” até hoje, deixando interrompido aquele meu diálogo. Talvez eu tenha extrapolado todos os limites do saudosismo, talvez eu esteja querendo tirar leite de pedra ao tentar achar uma face positiva e construtiva no movimento da nostalgia. Há algum lado bom em ser um completo nostálgico? Também não saberia responder. Sei que o caminho de volta, a tentativa de retorno, o ato da quase repetição, tudo isso, tudo é tão exoticamente belo. Quero ter 69 e refazer um caminho dos meus 26. Vislumbro esse dia. Quero experimentar a sensação de tatear a uva passa que um dia foi só uma uva.


Victor Gorgulho é estudante de artes plásticas.



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