Hoje eu vi a Andréia Sorvetão chorando no supermercado. Ela foi paquita nos anos 80, no auge do programa da Xuxa. Se você der um google vai lembrar do rostinho dela. Fiquei um tanto comovida porque também choro em supermercados. Não sei exatamente por que... Arrastar o carrinho de compras pelos corredores do Futurama – supermercado que eu frequento aqui no meu bairro – às vezes me dói como uma faca. Uma melancolia brutal. Não sei porque chorava a Andréia Sorvetão. Mas tive um ímpeto de abraçá-la com carinho e dizer que tudo pode sim ser difícil, mas fiquei com medo de chorar muito mais do que ela e deixá-la constrangida. No fundo eu queria saber dela, como foi, como é. Essa coisa de ter sido. Será que tudo aconteceu como ela queria que acontecesse?
O tempo de agora tá me parecendo impossível. Sou artista, trabalho inventando minhas coisas, me juntando com gente que admiro, fazendo peças, performances, concertos, tentando incansavelmente compreender nosso universo, ou escancarar minha falta de compreensão imaginando universos paralelos. Quando criança, inventava coisas e era feliz assim. Sou feliz assim. Mas tenho sentido um lodo pesado. Uma areia movediça engolindo os artistas nas cidades, engolindo o tesão dos artistas nas cidades. Tá tudo caro, parece que a política não tá nem aí e os rios secam e se a gente não sabe nem como vai ser para dar descarga na nossa merda, como vamos resistir e criar novidades, como continuar quando a cidade parece querer te expulsar? Não quero ser vítima da minha vaidade, entende? Travar batalhas por mim mesma. Ah! Não. O teatro é do mundo e para o mundo.
Tenho uma companhia de teatro que vai completar dez anos de atividades no final desse ano, a Cia. dos Outros. Dez anos é tempo pra caralho se pensarmos como é difícil manter de pé um coletivo que cria seus próprios trabalhos. Contando com alguns dinheirinhos pra isso acontecer. Muitas vezes investindo outros dinheirinhos suados para concretizar as idéias. Nessa semana numa reunião pensávamos: – O que vamos fazer para celebrar esses dez anos? Vamos montar uma nova peça?
Mas havia um certo desânimo, um tipo de cansaço que ainda não tinha visto nos ares deles nem no meu. Como vai ser continuar, quando tudo parece desmoronar? Quando sobreviver se tornou uma espécie de delírio coletivo? Como continuar inserindo nossa arte nesse tempo delirante?
Nunca me pareceu tão tentador e tesudo imaginar um futuro próximo onde eu tenha outras atividades. Fico pensando na Hilda Hilst no seu sítio, com seus bichos. Me imagino recebendo meus amigos segurando um cajado com uma bata que arrasta no chão, usando pantufas. Sempre com um papagaio no ombro, ou segurando um patinho bebê. Não vou temer besouros nem aranhas. Vou plantar e cozinhar para os meus.
[Pequeno adendo em que me lembro furtivamente do meu pai e me dirijo diretamente a ele: – Pai, entendo completamente como você devia ser feliz no seu sítio anos atrás, com seus 25 cachorros que andavam atrás de você como se tu fosses um líder religioso pra eles. No futuro, acho que quero isso. Fim do adendo.]
Eu faço o que faço desde os 11 anos de idade. Foi quando o mesmo pai que tinha sítio me colocou na primeira oficina de teatro pra ver se eu ficava um pouco mais “extrovertida.” (Sim, eu era tímida). O teatro virou meu ofício e eu levo isso muito a sério. Desde então ele me deu tudo, espanto, belezas, doenças, sono, falta de sono, parceiros inigualáveis, terror, liberdade, amantes, amores, viagens. Tá. Mas quando será a hora de dizer: – Ok, talvez já tenha feito o que estava ao meu alcance, tá pesado, agora vou fazer outra coisa, chega.
Não consigo dizer qual dos meus trabalhos foi bem-sucedido ou malsucedido. Uma trajetória artística não é objetiva. Mas se eu tentar colocar minhas coisas objetivamente, como números de público ou premiações, minha trajetória é um fracasso total. Se contar todas as pessoas que já viram minhas peças, é um punhadinho de gente. Minha companhia não tem qualquer prêmio. Então, desse ponto de vista do “mercado”, de uma “expectativa de sucesso”, tirei 5,5, que é nota suficiente para existir, pagar minhas contas e pagar meus companheiros. Agora, do ponto de vista pessoal, é minha própria história enquanto gente. É como articulo meu pensamento sobre o mundo e as coisas.
Ontem assisti "Guerra sem batalha", espetáculo teatral da companhia Les Commedians Tropicales, amigos queridos que também completam 10 anos de Terra. Fiquei olhando para eles duas horas e meia, e eles se lançando com força na cena, cheios da coragem daqueles que navegavam para descobrir novas terras à vista. Na peça, eles se perguntavam se dariam conta de abordar temas como a revolução, a guerra, aonde estão, pra onde vão, qual é nosso valor como artistas na sociedade, por quanto tempo vamos resistir?
Mas ao contrário das perguntas que podem nos levar a melancolia e ao desespero, ao choro no supermercado abraçada a Andréia Sorvetão, o que eu via em cena era o vigor de artistas que ainda resistem, mesmo feridos pelas batalhas ainda urram e dançam na barriga da baleia. Chorei muito vendo aquilo tudo. Porque o teatro ainda tem tanto a oferecer. Tantas camadas, tantos sentidos. A cidade invadia aquela sala, assim como a música que acontecia ali, ressoava impiedosa na cidade.
No programa do espetáculo, Kil Abreu (pesquisador e crítico de teatro) escreve:
E agora? Qual é a dialética e qual é a didática possível do fracasso? O que ele tem a nos dizer, produtivamente, se não quisermos ficar reféns da melancolia ou da ironia que se auto anula? Qual é temperatura de uma época em um país que não só se recusa a dar salto como também vem botando panos quentes nas próprias feridas? Como arrancar a relva para que o verde venha?Me parecem vitais as perguntas. Não tenho as respostas. Tampouco sei sobre esperanças.
Lembrei de "A pior banda do mundo", espetáculo que fiz com meu grupo, baseado nos quadrinhos do português José Carlos Fernandes. Desde lá explanamos sobre o fracasso. Já nem tenho mais calafrios com essa palavra. No final do espetáculo, uma das personagens conta que devido a sérias restrições orçamentárias, o local aonde a banda ensaia é iluminado por lâmpadas incandescentes defeituosas. As lâmpadas ficam tremeluzindo, como um prenúncio do término da sua vida útil. Porém o seu colapso final é sucessivamente adiado.
Saudade do futuro que me espera no sítio, com o papagaio, o cajado.
Mas por hora, ainda sigo um pouco mais. Ainda resisto. Tremo como as lâmpadas defeituosas que por vezes parecem dar os últimos espasmos, mas ainda não são total escuridão.
Carolina Bianchi é atriz, autora, diretora teatral
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