Perguntado sobre o assunto o puxador Neguinho da Beija-Flor não se intimidou e disparou: “se hoje temos o maior espetáculo audiovisual do planeta, agradeça à contravenção”. Neguinho tem toda a razão. O samba foi um ritmo perseguido no início do século passado e assim se juntou com o jogo do bicho, com o tráfico e com outros setores marginalizados. O samba foi legalizado, mas o jogo do bicho e as drogas não. Sendo assim continuam participando da festa com a grana do sangue. Não o sangue do pé da passista ou da mão das costureiras que se esfalfam por quase nada pra fazer o carnaval acontecer, mas do sangue do crime organizado. Um crime que tem sua cabeça longe dos morros e das periferias, nas altas esferas do poder.
A Guiné Equatorial, do sanguinário ditador, não patrocinou apenas uma escola do carnaval carioca. Pela segunda vez em quatro anos o país também sediou a Copa Africana de Nações, organizada pela FIFA. A instituição Suíça adorada por muitos vem trilhando o caminho da corrupção mundial com seu torneio principal: a Copa do Mundo. África do Sul em 2010, Brasil em 2014, Rússia em 2018 e Qatar em 2022. Uma trilha sinistra que vai pilhando três países em desenvolvimento, conhecidos por suas corrupções ontológicas, e na crista da onda com a sigla BRICS; e termina num canto do planeta, num país sem nenhuma tradição futebolística, riquíssimo em petróleo, comandado por uma mesma família desde o século XIX, onde os partidos políticos são proibidos e uma ideia de eleições para um parlamento foi prometida para 2005, mas enterrada indefinidamente.
Passamos no ano passado pela festa que é sediar uma Copa do Mundo, continuamos vivendo na tristeza que é sediar uma Copa do Mundo. Com o carnaval oficial não é muito diferente e as emoções e energias se misturam. O fluxo da grana vem e vai construindo e destruindo coisas belas, cada vez mais de um jeito tão tudo-ao-mesmo-tempo-agora que fica difícil entender se o que passou foi prazer ou dor. Isso não é um privilégio do carnaval ou do futebol, acontece também com o cinema, o mundo das artes, a televisão, as pesquisas científicas. Está tudo aí pra quem quiser ver. É tudo tão às claras que nos cega!
Diante disso sobra a velha pelada de rua, um evento mundial que não precisa de patrocinadores pois é autogestionado e autofinanciado. Assim como o carnaval de rua do Rio de Janeiro e outros cantos, que mesmo sofrendo o assédio das grandes distribuidoras de cerveja, continua gratuito e mágico, um ritual de travestimentos e transmutações que ainda nos permite cantar na rua a dor e o prazer que é viver nesse mundo de tão profundas contradições.
DOMINGOS GUIMARAENS Doutor em literatura brasileira, professor da PUC-Rio, integrante do OPAVIVARÁ! e colunista do ORNITORRINCO |
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