LAMPEDUSA - 14 DE FEVEREIRO DE 2015



Ninguém fala sobre as coisas que se querem ouvir. Seis mil habitantes cansados de tantas palavras noticiadas, poeira debaixo do tapete. São duas décadas de imigrantes em barcos, dos recursos financeiros aplicados somente na causa, ouço de soslaio. As máquinas vindas de marte e o serviço de internet precário nas casas. O casal aqui de casa é meio hippie, não separam o lixo, mas plantam parte do que comem. Ela me alerta para não dizer que sou jornalista, porque odeiam. Duas vezes, quando pedi por informações, me perguntaram se eu era jornalista. Entendi que o melhor é brincar de turista. Não sou repórter e não estou atrás de fatos, expliquei a ela. Vim para perceber o que está no ar, ter impressões. Não tenho nenhum compromisso com a verdade, que, redundante lembrar, não existe.

Saí de bicicleta para o lado esquerdo. Mari recomendou uma visita ao Farol, estonteante. Não comentou que era uma base de observação, lembrei da torre do Foucault, vigiando e punindo. Não querem falar sobre isso. Há escritos apagados no muro do Farol. Formam uma nova escrita, como as placas vazias. Explicam tudo em minúcias: aqui preferem calar. Cheguei à ponta da encosta e havia um X, li mar proibido. Sou uma leitora de histórias sem palavras, me acostumei e não tem quem me impeça, é terrível. O X do mar proibido à frente, as aves cantando forte e me rondando. Espiãs. Olhava para elas, aquela beleza de bico amarelo e eu pensando que eram delatantes, como o doberman, cachorro de cérebro pequeno do laboratório do Reich. Pássaros malditos, avisando a todos os aparelhos que estou ali. Já biometrizaram meu rosto, certeza. Preciso levar meu laptop para a padaria wi-fi da cidade e subir na nuvem as imagens antes que. Imensidão vertiginosa. Mar e montanha. Quanta saudade. Parece a vegetação da Serra do Espinhaço, seca, com alguns cactos, grama verde quase marrom e pedras pequenas e esbranquiçadas. O mar chama, as aves são como as sereias do Ulisses, sedutoras e odiosas. Fico meio ridícula apontando a câmera para o farol que contém um canhão de registro, é o sujo falando do mal lavado. As antenas de diversos tamanhos e formatos direcionam-se para o encontro do céu com o mar. Penso tanto nas ondas que os variados radares estranhos emitem que chego a sentir dor de cabeça. Justifico para mim mesma que é o frio do vento passando de uma orelha à outra na bicicleta. Aqui fazem assim: inventam para si mesmos. Imagina que Mari veio com a família para cá porque na Sicília era muito poluído. Não serei eu a primeira a contar que viver em Lampedusa é como ter a cabeça constantemente dentro do microondas. Ando muito apocalíptica, é preciso adaptar a calar. Encosto a bike com a bolsa num canto para me aproximar da impressionante estação de aparelhos. Um deserto de gente. Chego à frente e passa um carro preto de vidro fumê na estrada. Não olho, arrepio, dou meia volta. Minha bolsa com meus documentos na bicicleta.

Resolvo descer para ter uma imagem daquele radar cinza de guerra rodando 360º acoplado ao caminhão verde musgo. Quero levar ele comigo, é como um protótipo do Comandos em Ação em tamanho real. Passa uma caminhonete branca. Respiro. Ela manobra no farol, enquanto guardo a câmera na mochila, calmamente, como se fosse a coisa mais normal, uma turista, o radar e o caminhão. Empurro a bicicleta, a caminhonete encosta. Eu já preparada para entrar no quartinho militar e apagar. Eram dois italianos cada qual com sua pança encostada no painel, bochechas rosadas, hay algum problema con la bici? Tão adrenalada, respondo em inglês, I’m just walking around. Eles riem e seguem.

Por longo tempo tento achar a entrada sinistra para seguir pela estrada panorâmica. Estou besta com a quantidade de máquinas novas e nenhum ser humano perto. As antenas da Selex ES devem enxergar a Líbia dali. O mar infinitesimando à direita do Cabo Ponente, descubro no mapa o nome do lugar onde me encontro. A bicicleta é toda feminina, de passeio pela cidade, não pela estrada esburacada. Construções por toda parte. Montes de areias circundados por caminhões, obras em plena atividade no sábado de carnaval. É o carnaval mais fantasioso da minha vida, a realidade dando um banho na ficção. Vejo marcas de pés humanos, de aves e de cachorro no asfalto. Uma graça. Metáfora da prisão de uma ilha perdida. São muitos sobes e desces com apenas sete marchas. Vou atrás de duas antenas. De longe, figuram pequenas, na ponta do aclive. Vão crescendo mais e mais à medida em que me aproximo, até que as vejo imensas e são elas apenas a ponta de um grande complexo militar da aeronáutica. Não há vivalma. Uma bandeirinha italiana, perdida, ao vento. Lembra as imagens da Lua em crateras com a bandeira norte-americana fincada. E placas amarelas de proibido se aproximar, proibido fotografar, não encoste na grade eletrocutável, pessoal armado lá dentro e outras simpatias do tipo. A estrada estreita, pedregulhos multiplicam. Corro a extensão da grade com arame farpado em cima e as frases adoráveis acopladas no horizonte. Resolvo deixar a câmera na mochila mais tempo, não tem ninguém na vista, mas o coração tum tum. De longe, faço uma foto, estou muito assustada com o tamanho de tudo. A história que leio está se tornando um thriller. Tento espantá-la, já não é mais tempo. Não terei testemunhas para quando me levarem.

Pego um atalho na estrada de terra para fugir do thriller, há uma placa que diz Cala Pulcino, o mapa a enxerga como um bom plano de fuga. À esquerda desse novo caminho, há avisos grandes que anunciam - com letras bem claras - reserva florestal, proibido passar. Reserva. Sei. Estou descrente. O thriller ferve. A estrada ainda vazia de gente, cheia de besouros, pedras e lama. Insisto até sua extremidade. Cala Pulcino é um precipício que não leva a lugar nenhum. O sol africano com o vento europeu. Tenho que voltar, atalho errado. Eis que percebo que a bicicleta que empurro vai ficando mais pesada. Pneu furado.

A adversidade na roda me alivia, os problemas do mundo, das ondas vigilantes de longo alcance, não valem mais nada perto de ter que voltar a pé por aquela estrada - onde ela está mesmo? - até a cidade sem ter ideia se sigo à direita ou à esquerda.

Limpo a lama do jeito que dá, enquanto elaboro como fazer. Passa um ciclista todo equipado. Escusa! Tentamos nos comunicar com meu italiano tão perfeito quanto o inglês dele. Está claro que meu pneu furou, ele diz que o centro a uns dez quilômetros dali. Eu nem sei que horas são para calcular se dá para chegar antes de escurecer. Àquela hora, já havia entendido que as máquinas estão no comando nesta ilha, danke, Kittler. Os homens são inofensivos. O ciclista comentou que vinha da ex-base da NATO, logo ali aonde não deu para ir sem pneu.




Nas entrelinhas da história que leio, não há como conceber que todo o aparato pós-tecnológico reunido na terra do nunca é para enxergar botes de plásticos lotados de africanos entrando na Europa. Estão faltando palavras que determinem situações. E os besouros no meu ouvido.

Quando eu menos esperava, volta o ciclista numa caminhonete. Quase não há humanos na paisagem, mas os que existem, são homens. Ele foi em casa buscar o carro para me ajudar. Levou-me de carona até a cidade e falava espanhol! Conseguimos conversar com um pouco menos de superficialidade. É dono de um hotel. Não tinha problemas em falar dos refugiados, ele que começou, inclusive. Do Panamá, ou seja, Imigrante tanto quanto, embora a comparação seja redutora demais, no caso, perguntou logo se eu era da polícia do Frontex. Quase ri. Eu, de bota e vestido com aquela bike totalmente inadequada, enlameada, do Frontex. (Freedom, not Frontex!, diz o cartaz da manifestação em frente à Embaixada Espanhola em Berlim, na semana anterior). Contou que hospedava um policial do Frontex; ontem de madrugada chegaram 102 africanos ao porto. Alguns direto pro hospital, os mais saudáveis para o campo de acolhimento. Lembrei dos africanos, há 500 anos, transportados para o Novo Mundo. Os doentes, que não poderiam ser vendidos no leilão, eram lançados ao mar antes de chegar à terra, para evitar prejuízos. Só os mais fortes chegavam vivos. Comentou que vieram muitas mulheres e crianças. Senti-me à vontade para também inquirir, onde era o centro di accoglienza? Ele apontou para uma ladeira no meio do nosso caminho, mas eu não sabia onde eu estava, de maneira que foi o mesmo que nada. Só deu para saber que tão longe da cidade não é, e também que não fica num vale. Quer dizer, recapitulando: para uns, o campo dos refugiados é num vale escondido, para outros, no topo de uma ladeira.

Escreveria que até agora não vi nenhum africano. Mas voltando para casa, na estrada, de bicicleta, final da tarde, início da noite, vi um negro de casaco amarelo e gorro, fumando um cigarro e caminhando. Deu vontade de parar para puxar assunto. Continuei até o mercado.


Ana Hupe é artista visual.

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