A HISTÓRIA DA BELEZA



Não acho a Gisele Bündchen bonita. Aguardo pedras e tomates no meu e-mail. Tá, é bo ni ta, ela se encaixa lá no padrão de beleza da mulher alta-magra-branca-loira-simétrica, e também no padrão de desejo de consumo por ser rica, casada com um homem igualmente bonito, morando em Nova York, filhos lindos, cachorros lindos, papagaios lindos (uma vida que parece ter sido moldada por um publicitário), só que, como a beleza está nos olhos de quem vê, nada disso me apetece. Ou seja, posso até dizer que é bonita [1- ver nota de rodapé], no entanto não comeria a Gisele Bündchen [2].

Essa é a minha opinião. E além disso ser uma tremenda bobagem – comentar se uma pessoa é bonita ou não, visto que não a conheço pessoalmente (ainda não tive o prazer) –, é um mal começo de conversa. Se esse fosse um artigo sério, ele começaria aqui: Gisele Bündchen, mulher distinta e com carreira de sucesso, é a personagem brasileira mais internacional desde (desde quando?) que surgiu nas passarelas. E nisso, devo admitir, ela tem talento. A forma com que move seu corpo e o faz atravessar uma linha reta na horizontal é totalmente pessoal e intransferível, ninguém anda como ela. Objeto de desejo e poder, sua beleza desperta inveja e propaga a imagem da bela mulher brasileira no mundo. O que já é um clichê dessa terra [3]. Entretanto, o que eu vejo quando olho para Gisele: todas as outras mulheres que não se parecem com ela, que não pertencem ao seu modelo. E me pergunto quais são os encargos de quem nasce num lugar que tem como estigma ser um país bonito por natureza?

Passei os dias pensando nisso após ter lido o livro História da Beleza no Brasil, da historiadora Denise Bernuzzi de Sant′Anna. O livro expõe pesquisas sobre as transformações ligadas aos padrões estéticos do país, a luta contra o envelhecimento e o conceito de feiura. Ser considerado feio é como uma maldição, algo que deve ser corrigido (uma obsessão nacional, não à toa somos campeões de cirurgias plásticas). O tema da beleza parece natural, todo o mundo se preocupa com isso, está comprovado nos museus – até nas comunidades mais precárias existem pentes, jóias, adereços – no entanto é no final do século dezenove até o fim do século vinte que aconteceu o grande boom da preocupação com a aparência física. Tanto no que é supérfluo como no que é absolutamente necessário, como os cuidados com o próprio corpo. A questão da beleza moderna é o casamento da ideia de saúde com a de se embelezar e rejuvenescer.

Evitar e camuflar o envelhecimento é obrigatório na rotina de adequação no conceito de beleza ocidental. A juventude, cada vez mais erotizada, ganhou valor e requisita uma luta sem tréguas contra o envelhecimento. Ser carismático e ter sex appeal tornou-se prioridade e mais importante do que ser inteligente e talentoso. Hoje em dia é mais importante a felicidade pessoal do que a ideia de mudar o mundo. Portanto, a beleza é parte da construção da individualidade, do sucesso pessoal e social, e assim nos tornamos cada vez mais dependentes da obrigação dos cuidados com a aparência.

Na posição de exército ideológico para tudo isso está a Publicidade. Examinando a propaganda dos produtos que combatem o feio, percebemos que é ela quem se responsabiliza a propagar o comportamento ideal, criando um modelo e um conjunto de normalidade. A missão dos produtos é a promessa de operar milagres estéticos, como se fosse possível corrigir os erros da natureza, sejam por meios de remédios ou até por correções cirúrgicas de qualquer parte do corpo. 

Tudo isso por medo de não ser adequado, o medo de não ser decente, o medo de ser feio. A beleza obedece normas. Em algumas vezes àqueles que estão à sombra da beleza conseguem driblar suas normas, escapando delas, mas sempre com o objetivo de pertencer, nem que seja pela construção de uma nova beleza. Reflexo do quanto o corpo se tornou o nosso objeto de construção e invenção, de afirmação do que somos (ou queremos ser).

Ok, eu não acho a Gisele feia. Ela é linda até demais. Linda até a perfeição. E por ser perfeita, parece pura. E por ser pura, parece insossa. Está tudo certo, tudo no lugar. O rosto, o cabelo, o nariz, a boca, os seios, braços, pernas, bunda. Por isso mesmo parece um objeto criado por um designer, uma peça que você pode pôr em cima da mesa para que os convidados possam ver e admirar. Assim como tantas outras que estão nesse hall de beldades. Todas as pessoas lindas são iguais, e cada feio é feio à sua maneira. O que eu mais gosto nas pessoas é a parte estranha delas.



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Notas de rodapé

1 - O que eu estou falando? Devo estar louco. Até o trema no ü do seu nome é um detalhe de beleza.

2 - O que não quer dizer absolutamente nada, já que muito provavelmente a Gisele Bündchen também não me comeria. Mas deixo claro que é uma situação hipotética, como se houvesse a possibilidade.

3 - Uma das primeiras coisas que os estrangeiros aprendem assim que chegam aqui é pronunciar a frase 'as mulheres brasileiras são lindas', além das palavras 'bunda', 'gostosa' e 'carnaval'.









Gabriel Pardal é editor do ORNITORRINCO.




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