UMA PESSOA É MUITAS COISAS


O que você escreve no item “profissão” da ficha do hotel foi assunto recente por aqui, em colunas instigantes do Gabriel Pardal e da Julia Wähmann. Eu sempre digo que passei anos sem coragem de dizer ali “poeta”, embora já escrevesse poemas. Porque na minha cabeça escrever poemas era uma coisa, ser poeta era bem outra. Como se a palavra não estivesse disponível assim, pra quem quer que fosse, como se fosse uma questão de merecimento, embora não houvesse um comitê a julgar quem podia ou não ostentar o título. Não tem prova da OAB de poesia. Não tem Conselho de Medicina concedendo registros. Ser poeta é questão de coragem e risco.

Porque vejam: quem anda de bicicleta é ciclista. Quem atravessa a rua é pedestre. Mas nem todo mundo que canta é cantor. Nem todo mundo que cozinha é cozinheiro. E nas festas quando te perguntam “cê faz o que?” ninguém espera que a resposta seja “cozinho banquetes para pequenas multidões, danço sem música em dias nublados e pedalo uma bicicleta florida”. Na orelha do meu livro novo eu me apresento assim. Porque isso diz mais do que “formada em Letras pela Puc-Rio, inglês fluente, etc e tal”. 

Antes dessa apresentação pessoal, lá na tal orelha, eu informo “Maria Rezende é poeta, atriz e montadora de cinema e TV”. A irmã se indignou: “fez uma cena em uma série e virou atriz?!”. O caso é que os anos passaram e eu mudei. Na beirinha dos trinta e seis, resolvi assumir que, mais do que dizedora de poemas – título que carrego há dezesseis anos –, quero brincar de ser atriz também. E como a palavra tem força e eu ando intrépida, botei a carroça na frente dos bois e me nomeei antes mesmo do fato consumado. Porque talvez eu já seja atriz há anos sem saber. Ou talvez eu nunca venha a ser. Mas já posso hoje vestir a camisa do desejo e botar a bunda na janela assim. 

No processo de fazer o livro “Carne do umbigo” me desentendi com a editora que iria publicá-lo. Faltavam três semanas pro lançamento, convites e release na rua, e eu subitamente mãe solteira do meu livro tão sonhado. Em meio a três doses diárias de Maracujina, telefonemas cheios de termos técnicos pra gráficas, tardes e noites de susto e medo de não conseguir, minha mãe me salvou com o fato consumado: “você sabe fazer isso, minha filha: fez seu primeiro livro sozinha há onze anos atrás”. Era verdade. Era óbvio. E no entanto absolutamente surpreendente. Por isso dei trabalho pra editora. Por isso elas me deram trabalho também. Porque talvez eu deva ser minha própria editora. Sei brincar disso e gosto. Contrato os designers pra fazer a capa. Penso quem vai escrever a orelha. Fecho prazos, negocio valores. Sei o que quero da diagramação, sei que poesia se imprime em papel Pólen Bold 90. 

Mas pode ser poeta, atriz, montadora, cantora de chuveiro, ciclista, cozinheira, editora, bailarina? Descobri ao longo dos anos que algumas das pessoas que mais admiro são muitas pessoas, exercem talentos variados. Os americanos criaram uma expressão que define o que talvez seja uma característica da nossa geração: “slash generation”, em bom português “geração travessão”. Poeta/atriz/ciclista/bailarina. Advogado/baterista/pai. Ou talvez nem tenha nada a ver com geração, e sim com ser gente e se permitir viver tudo que se pode.

E na orelha do próximo livro, ou na ficha do próximo hotel, talvez eu escreva “profissão: acrobata”. Foram só oito aulas de andar sobre os ares, mas eu tô topando todos os riscos.


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*inspirado no título do livro “Duas pessoas são muitas coisas” de Cristiane Lisbôa



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