Foi num Natal há quase 30 anos na casa dos meus tios Carlos e Rosa. Família enorme, mais de 20 primos reunidos, aquele caos das festas de Natal que você ainda acha divertido quando é muito pequeno. Já era de noite, mas o calor não dava trégua, quando meu primo mais velho desceu de rapel do sótão do apartamento vestido de Papai Noel. Eu não era tão novo assim, já estava numa idade na qual a história do bom velhinho começa a ficar meio estranha, principalmente pra quem mora num país tropical. Um senhor todo encasacado, sempre dentro de um quadro com muita neve, desce pela lareira da casa e distribui presentes para todas as crianças do mundo. Tudo certo ele ser onipresente, meio Deus, tudo bem os bilhões de presentes (ele teve um ano e a ajuda de duendes para fabricá-los), mas a neve o frio, os casacos, a lareira, nada disso combina com a paisagem do pessoal suado, camisas empapadas, testas brilhantes. Mas mesmo assim eu ainda não era tão velho o que me permitia querer acreditar um pouco mais nessa história que me trazia alguns benefícios materiais. Só que nessa noite o Papai Noel desceu mesmo do telhado da casa distribuindo presentes, foi um lance mágico, um dos primeiros estados de epifania dos quais me lembro. A magia do natal se fazia completa, uma noite que me faz até hoje ter uma vaga ternura por essa festa.
Cada vez mais é difícil lembrar dessa noite e não enxergar meu primo Carlos Antônio por trás daquela roupa, morrendo de calor, talvez envergonhado (embora não parecesse no momento) dando presentes que alguém tinha comprado e que ele não fazia a menor ideia do que eram. Ali a certeza era de que Papai Noel havia se materializado e os presentes tinham sido feitos por duendes durante um longo e duro ano de trabalho no pólo norte. Mas a magia não vinha só disso, vinha também da materialização de tudo de uma forma espontânea e descompromissada. O peru de natal e toda a comida que magicamente aparecem na mesa, a decoração que surge do nada, os litros de refrigerante ofertados como água, a logística do transporte de todos para uma mesma casa que foi magicamente preparada para receber 57 pessoas, o trânsito que não importa como flui pois o tempo e você possuem laços interativos fluidos e rasos. Quando se é criança e não se tem nenhuma responsabilidade com porra nenhuma é mole ter uma epifania com Papai Noel. O tempo passa, você cresce, e a cada ano uma pequena tarefa lhe é imposta nessa data. Isso começa justamente no momento em que os vestígios de uma consciência, a formação da memória, e da capacidade de compreender minimamente a realidade surgem no seu corpo. Sendo assim a janela entre você viver um momento mágico e poder tomar consciência de que está vivendo um momento mágico é muito pequena.
As tarefas impostas no natal começam pequenas e lúdicas, como decorar a árvore, e vão se adensando e entrando no plano do tédio do cotidiano da vida adulta como: carregar uma sacola de compras, ajudar a guardar tudo no porta malas do carro e transfundir todo o conteúdo para a geladeira; até você ir crescendo (sofrendo com a inexorabilidade do avanço do tempo linear) e ter que ajudar na arrumação da casa, na compra dos presentes, na elaboração e logística da lista do amigo oculto, em se foder no trânsito para o super mercado, com o tempo e você já mantendo uma relação áspera e profunda, fazer compras, carregar as sacolas até o porta malas, transfundir tudo para a geladeira, pedir o gelo, cuidar da chegada do gelo, começar a pagar por isso tudo e, se der tempo (e é bom que dê), buscar no aeroporto aquela sua tia que chega dos EUA na manhã do dia 24 de Dezembro. Não há magia que resista a tudo isso e talvez por isso os padres de Dijon, na França, tenham queimado um Papai Noel em praça pública na frente de centenas de crianças de orfanatos locais em 1951 [1]. Não tinha nada a ver com a ideia de que Papai Noel estava substituindo a importância de Jesus e devia ser incinerado. Foi um gesto filantrópico dos padres poupando as crianças da frustração futura com a perda da magia para o massacre das obrigações adultas cotidianas.
Mas, se dentro de todo esse caos, em algum lugar você conseguir se conectar com sua criança interior, naquela breve janela que une consciência, memória e magia, talvez você consiga resgatar alguma vaga ternura no meio dessa noite quente do aniversário de Jesus. Escrevo isso pingando de suor no sótão de uma casa em Búzios vestido de Papai Noel, me deram o sinal e eu devo descer com o presente e repetir o gesto do meu primo há quase 30 anos. Hesito por um instante. Talvez seja uma maldade mentir assim para as crianças que estão lá embaixo, mas penso que talvez algumas delas estejam naquela breve janela, me sinto um mártir bem feitor, um salvador, o que me conforta de um jeito egoísta, bem cristão, bem ao estilo materialista Papai Noel. Tô descendo criançada. Hohoho...
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[1] Para ter uma visão mais completa e séria sobre esse incidente você pode ler o livrinho O Suplício do PapaiNoel do Claude Lévi-Strauss, a melhor leitura de Natal para a vida adulta.
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