Estou doente. Nada grave, apenas uma virose que tentei evitar com todos os remédios que podia, mas parece que não se faz mais Vitamina C como antigamente. Aproveito para ficar em casa diminuindo a pilha de leituras que acumulei durante esse tempo de muito trabalho. Aproveito também para assistir os filmes e séries atrasados. Ninguém é melhor do que eu na obscura atividade de ficar de pernas pro ar, tricotando o nada sobre o nada. Atividade que requer tempo, paciência, esforço e compromisso.
Da pilha de leituras, catei o livro do Alex Soojung-Kim Pang, "The Distraction Addiction", que me deu boas horas de viagem. O livro trata dos malefícios de nossa constante vontade em buscar diversão, de estar online participando da vida virtual e demonstrarmos para os outros nossa capacidade em nos divertirmos. Pang considera que somos viciados em diversão. Uma das teses é esse paradoxo de que a necessidade de sermos entretidos continuamente não está tornando nossa vida mais interessante. É bem provável que seja exatamente o contrário. A dispersão está empobrecendo nossa experiência em vida.
O que é mais importante, diversão ou tédio? Não consigo imaginar ninguém correndo atrás de tédio, fazendo alguma atividade porque aquilo irá entediá-lo até o fim. A questão é: será que a necessidade em se divertir o tempo todo não é um traço de infantilidade? Como crianças que imploram por mais uma volta no carrossel. Em um rolezinho pelo Facebook o que se vê são fotos de festas, viagens, perfis de amigos expondo curtições em excesso – para podermos curtir –, num relacionamento sério com o prazer.
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A necessidade de sermos entretidos continuamente
não está tornando nossa vida mais interessante. É bem
não está tornando nossa vida mais interessante. É bem
provável que seja exatamente o contrário. A dispersão
está empobrecendo nossa experiência em vida.
está empobrecendo nossa experiência em vida.
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Outro livro à mão é "Os Tempos Hipermodernos", do filósofo Gilles Lipovetsky, que busca definir a situação da sociedade contemporânea. "É preciso ser mais moderno do que o moderno, mais jovem que o jovem, estar mais na moda do que a própria moda", diz Lipovetsky, também percebendo que do outro lado valorizam a saúde, as religiões orientais e o equilíbrio. A contradição contemporânea é do homem que anseia por viver a eternidade mas que age desesperado como se não fosse existir por mais de um dia.
Admito, sou uma pessoa conectada. Não tanto quanto muitos, mas bastante quanto poucos. Tenho conta no Facebook, Twitter, Instagram, Flickr… Entretanto não sou do tipo que está o tempo todo em busca de entretenimento. Hoje, aqui, agora, deitado na cama com o livro do lado lembro de outros momentos como esse, deitado na cama olhando pro teto, pensando no que tinha acabado de ler, ou no filme que tinha acabado de assistir, planejando sonhos, revivendo memórias, enfim, estando solitariamente só. Digo: alimentando a vida interior. Penso que uma vida cheia de ocupações e afazeres pode ofuscar a vida interior. E há uma parte da vida exterior que sem a vida interior se torna completamente vazia.
Aí que por alguma conexão (o link do link do link), acabei me lembrando do Michel de Montaigne. Rápida História: Nasceu no Sul da França em 1533 no Castelo de Montaigne, após seu nascimento o pai entregou-lhe a uma enfermeira de uma aldeia vizinha e só voltou para a família três anos depois. Montaigne começou sua carreira profissional no Direito, onde demonstrou talento para debates e questões que envolviam a tolerância religiosa e o etnocentrismo. Aos 34 anos, depois de ter sido membro do conselho real e de ter sido prefeito das cidades de Périgueux e Bordeaux, ele se retirou da vida pública para se dedicar a ler e a refletir sobre a vida. Depois viajou pela Alemanha, Suíca e Itália durante dois anos e em seguida, de volta para o Castelo, permanecendo em seu exílio intelectual. Ficou principalmente na torre de sua propriedade (hoje conhecida como Torre de Montaigne), num quarto com uma mesa, uma cama e cerca de mil livros. A solidão para ele era a condição perfeita para o progresso pessoal. Lia muito. Mandou inscrever 57 citações na paredes de sua biblioteca, que podem ser lidas até hoje pelos visitantes do local. Durante esse tempo de isolamento, não parou de ler, pensar, escrever, e acabou inventando o gênero literário Ensaio.
Essais foi como Montaigne chamou a série de textos que escreveu ao longo de 20 anos. Escrito com ideias claras, num texto fluído sem pretensão de estilo. Encarava a ficção com menosprezo, dedicou-se inteiramente à não-ficção, e assim, por consequência, a si próprio, procurando encontrar e revelar em si o que é singular. Sua vida interior. Seu trabalho é o auto-retrato de um homem. Ao fazer esse estudo de se auto-observar acabou por observar também o Homem em sua totalidade.
Se você chegou até aqui, então é provável que ainda tenha um pouco mais de paciência para que eu possa lhe mostrar a nota da primeira edição do Essais, onde Montaigne escreveu:
“Quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artifício: pois é a mim que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeições e minha forma natural de ser hão de se ler ao vivo, tanto quanto a decência pública me permitiu. Pois se eu estivesse entre essas nações que se diz ainda viverem sob a doce liberdade das leis primitivas da natureza, asseguro-te que teria com muito gosto me pintado por inteiro e totalmente nu”.
No fim de sua vida – morreu aos 59 anos – acabou se tornando o tipo de figura muito querido pelas pessoas, a do intelectual público, o guru a ser seguido por multidões.
Dizem que é impossível existir um homem como Montaigne hoje em dia. E que também é impossível criar uma obra como ele criou. Perco meus pensamentos nesse assunto (e muitas cervejas). Os tempos são outros mas esse juízo de valor não pode ser feito assim. Precisamos de outro Montaigne? É preciso um pouco mais de dedicação para se aprofundar em certos trabalhos e nos dias atuais fica difícil prender a concentração em alguma coisa por mais de vinte minutos, isso é verdade. Sou inquieto, tenho habilidade em navegar nesse mundo de links assim como também sei mergulhar no que faço. Tenho febre.
Gabriel Pardal é editor do ORNITORRINCO.
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* Imagem de capa: Kim Dong Kyu.
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