A SOBERBA DE MOSCOU E A CARA MAL LAVADA DE WASHINGTON


A Rússia invadiu a Crimeia, sul da Ucrânia, não há dúvidas disso. No entanto cabem muito mais avaliações sobre a legitimidade desta ingerência e o que ela significa no mapa das relações geopolíticas do que uma condenação sumária e estéril.

Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que boa parte dos grandes veículos de imprensa do ocidente vem tratando a invasão Russa como sendo um desrespeito profundo não apenas contra a soberania ucraniana, mas como ofensa direta a todo o planeta. Segundo eles, todos deveriam se solidarizar com o governo interino ucraniano – este nunca questionado de sua “legitimidade” – e condenar o avanço de Moscou. A Rússia é mais uma vez decretada uma nação pária.

Contudo poucos fizeram ou fazem observar a cara mal lavada do discurso oficial dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte, especialmente dos Estados Unidos, ao reclamarem para si o poder de decidir o que deve e o que não deve ser feito no que concerne aos conflitos pelos quatro cantos.

Não é preciso ir muito longe na história para perceber a hipocrisia destes guardiões da conduta ética. Se não quisermos tocar no fresco e mal digerido caso líbio, basta visitar um capítulo emblemático e também recente: a invasão do Iraque por forças americanas, que fez reviver na antiga Mesopotâmia a “babilônia”. O pretexto da excursão bélica, nunca autorizada pela Organização das Nações Unidas, era a busca por armas de destruição em massa – que jamais foram encontradas. Pelo contrário, tudo não passou de uma gigantesca máquina de propaganda enganosa, como ficou devidamente atestado.

Do cume de seu poderio militar gigantesco e sem par, de sua 
indústria cultural onipresente e hipnótica e de suas afiadas garras 
econômicas, os EUA não encontram concorrentes na difusão do seu 
american way of life. Hoje um selfie que dá sinais de desbotamento.

Que moral tem as instituições do poder dos Estados Unidos para dizer o que é e o que não é “legal” no caso da invasão Russa ao território da Crimeia? Nenhuma. Quem diz o contrário não está à favor de maior democracia, senão de permitir aos “americanos” que exerçam o papel de polícia mundial, um papel inaceitável para aqueles que acreditam na autodeterminação dos povos.

Não quero defender ingenuamente toda e qualquer pretensão russa na Crimeia, área que hoje pertence ao território ucraniano, mas há muito mais atenuantes no caso em questão do que a maioria esmagadora das dezenas de intervenções dos novos ingleses ao longo da história.

Primeiro, o governo de Kiev caiu por mãos de grupos de tonalidades claramente nazistas, como é feito conhecer por notícias mais comprometidas com um amplo escopo do que ali se passa. Segundo, a Crimeia praticamente solicitou a intervenção russa por conta do desarranjo interno que vive o país, que impede inclusive o ensino oficial do russo na área que é formada por maioria russa e que outrora foi parte, ela mesma, do maior dos países eslavos.

Grupo nazista durante protestos em Kiev.

Vale lembrar algo que um dos mais importantes antropólogos estadunidenses, Edward Sapir, soube sondar no caráter russo: 

“Nas relações pessoais, podemos observar a curiosa disposição do russo para ignorar todas as barreiras institucionais que separam os homens entre si; no seu aspecto mais fraco, isto envolve por vezes uma irresponsabilidade pessoal que nenhuma insinceridade abriga.”

Acima de tudo importa destacar que a Rússia não é o único país a ter “interesses” em suas ações, como quer fazer crer essa opinião enlatada, automática e pueril. Todos tem “interesses” e vão lutar por eles, alguns de maneira direta, outros de maneira falsificada, além é claro de algumas ações que não acontecem primordialmente por tais sortes de “interesses”. Neste caso é possível até dizer que soou em intenso tom o último destes, sendo a população da área predominantemente russa.

Deus, se existe, até hoje não desceu à Terra anunciando seus desígnios e representantes para toda a humanidade e, assim, não fez conhecer nenhum destino manifesto como reivindica a doutrina estadunidense. Do mesmo modo não se pode desconhecer, pelo exame da história, que nações detentoras de grande poder buscam submeter, por quase todos os meios disponíveis, a vontade de outros povos. Ainda que se passem por defensores do interesse genuíno destes e dos valores humanos.

Pouco após o fim da União Soviética (consequentemente da alcunhada guerra fria) alguns intelectuais cogitaram vender a tese de que o mundo vivia um quadro multipolar de forças, onde muitos países também passavam a influenciar nos rumos globais. Uma proposição cegueta no berço, porque os Estados Unidos é que estão a dar as cartas e até aqui vigora a “Pax Americana”.

Do cume de seu poderio militar gigantesco e sem par, de sua indústria cultural onipresente e hipnótica (Hollywood como maior símbolo) e de suas afiadas garras econômicas (como locomotiva consumidora de considerável fatia de toda a produção mundial, destacada posição no desenvolvimento tecnológico científico e detentor da moeda comercial internacional, o dólar, desde 1973 sem lastro) os Estados Unidos não encontram concorrentes na difusão do seu american way of life. Hoje um selfie que dá sinais de desbotamento após a crise da bolha imobiliária e a crescente concentração de riqueza na mãos de cada dia mais poucos gringos, o que está fazendo crescer o descontentamento interno.

E se não existem compartilhamento de governança e alianças sinceras, como evidenciou de mais uma forma as revelações de Snowden ao denunciar o imenso programa de espionagem dos EUA, existem resistências e tensões prontas a defenderem interesses soberanos contra as investidas capitaneadas pelos ianques de cooptarem ou submeterem os grupos dirigentes de cada nação em benefício deles.

Os Estados Unidos assistem agora ressurgir da hibernação o urso asiático de traços europeus. Legal ou ilegal (magnéticos processos sociais estão acima de legislações), o resultado do plebiscito que se avizinha na Crimeia pode significar, agora sim e pós muro de Berlim, que é possível que emerja um globo com forças mais diversas, onde nem todos estão de acordo quanto a um alinhamento automático com a “Pax Americana” e onde “outros” também fazem valer suas vontades.


Júlio Reis é poeta, jornalista e colunista do ORNITORRINCO.
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