CERTIFICADO DE VIDA: A MORTE É INEVITÁVEL


Na vida universitária chega um momento em que pra tudo o que você faz, alguém vai lhe pedir um comprovante, um certificado. Uma simples conversa com o gerente do banco, sobre suas transações de conta, pode valer um certificado – afinal é quase igual a uma palestra sobre “economia”. Ou quando você vai à um café e observa todo o processo de torra e mistura dos grãos de café, isso poderia gerar um certificado de “ciência e tecnologia de alimentos”. A compra de um livro numa livraria, um filme no cinema, um vídeo no youtube, uma conversa no bar com os amigos, as manifestações de rua e tudo mais, poderiam (aliás, os universitários iriam adorar) gerar um certificado típico de um seminário filosófico: "Ocaso e opressão versus liberdade: análise foucaultiana das políticas do cotidiano brasileiro". Isso, porque cumprir as horas exigidas por qualquer curso em práticas extras é um Ó. Você vai em mil palestras, seminários etc, e ao fazer as contas descobre que ainda faltam aquelas benditas três horas. Foi por isso que eu e mais uma colega decidimos buscar, no início de cada semestre, construir uma agenda e selecionar lugares e programações que além de gerar os famosos certificados, gerasse conhecimento.

Um dos primeiros seminários que combinamos em ir 
se intitulava “O homem, um ser para a morte”. Eu, pas-
sando por uma “crise existencial”, achei que saber algo 
sobre a morte seria o ideal. 

Um dos primeiros seminários que combinamos em ir se intitulava “O homem, um ser para a morte”. Eu, passando por uma “crise existencial”, achei que saber algo sobre a morte seria o ideal. Sábado de manhã, como já era de se esperar, minha colega me deu o bolo. Bom, até parece que alguém sairia de casa no inverno sábado às 8:00 horas da manhã para ouvir uma palestra sobre a morte em Heidegger. Eu saí. Para mim estava tudo horrível, e para piorar, como haviam apenas oito pessoas no local, a palestra se transformou em um diálogo: o professor palestrante, um físico, três tietes do professor de filosofia, um “””expert””” em Heidegger , uma psicóloga e eu. Exceto eu, todos se entendiam e discordavam entre si de uma maneira bem tranqüila. As horas passaram e chegou o momento das perguntas, eu rapidamente perguntei “E o suicídio, Heidegger diz algo?”. A psicóloga olhou pra mim como se eu fosse uma estranha (o que de fato sou), e quis dar uma explicação chatérrima, olhando nos meus olhos com cara de “Não se preocupe eu irei lhe ajudar”. Todos os sete começaram a viajar loucamente, sem terem tragado nada. É de admirar a capacidade que algumas pessoas têm de flutuar. Comecei a me sentir uma estranha – mais estranha do que já estava me sentindo –, começaram a me olhar muito, e sei que minha cara tava horrorosa pois eu tinha chegado tarde em casa na noite anterior, isso me incomodou.

Pedi licença. Saí do auditório quase que correndo e assinei a lista (claro, queria o certificado). Comecei a vagar pelas ruas, avistei uma casa funerária onde uma faixa em frente dizia: “A morte é inevitável, hoje palestra complementar aberta, com Fulaninho Yamasakhi”. Ainda com a síndrome dos certificados, pensei: “É hoje que mato todas as minhas horas!” Super decidida, adentrei o lugar da palestra, fui recebida no hall pela recepcionista que me solicitou a inscrição no evento, paguei lá uns 10 contos exigidos e automaticamente já estava concorrendo a alguma coisa, que não entendi o que era. A palestra já havia começado, e por incrível que pareça estava mais cheia do que de Heidegger , “Heidegger perdendo pro Yamasakhi”.

A funerária estava com aquele cheiro de produto de limpeza, para não dizer outra coisa. Num pátio ao lado da sala da palestra umas crianças brincavam. O local era bonito, agradável e acolhedor. Me acomodei e, sem querer, caí no sono. Dormi quase que profundamente, pois fui de súbito acordada por um monte de gargalhadas. Ao abrir os olhos, vi aquele monte de gente de olhos ‘chinos’ rindo em cima de mim. Um perguntou com muito sotaque, “Você gostar do curso?”. Mas é claro amei, respondi. “Parabéns você ganhou uma he, jing, ji, qing”. Ainda meio sonolenta “Ganhei é? E... e... o que é isso?”

Entrou a recepcionista com um monte catálogos para explicar o que seria o “he, jing, ji, qing”. Foi aí que descobri que eu havia ganhado uma parte de uma cerimônia de enterro no ritual budista, um chá para a hora do meu enterro.

Foi aí que descobri que eu havia ganhado uma 
parte de uma cerimônia de enterro no ritual budista, 
um chá para a hora do meu enterro.

Nada mal, até então. “Como você já ganhou uma parte importante da cerimônia, você ganha descontos exclusivos na compra de um esquife”. Paroooou, parou. “Eu ainda quero viver”, de repente a minha crise existencial sumiu. “Ora, que tola você é, pelo visto ainda não acordou, a morte é inevitável. Programar sua cerimônia de enterro, seu velório, não significa que você vá morrer agora.” Ah, entendi, Sr. Yamasakhi, quer dizer que sua palestra no final das contas é para comprar mais clientes para seu negócio, porque nem moscas têm aqui. Eu deveria ter desconfiado, mas quer saber vou comprar sim um caixão, o mais bonito que tiver, e ele vai ficar aqui guardadinho até que um dia eu me apague”.

Eu queria iniciar um bate-boca, mas o ‘chino’, era ‘chino’ budista e foi na paz, sem se exaltar. Yamasakhi me respondeu: “Isso é parte de um plano funerário, você paga por semestre uma quantia, e o bom é que o plano não é nominal, você paga, digamos, para quem morrer primeiro”. Entre muitos blábláblás, o Sr. Yamasakhi conseguiu me convencer a aceitar o plano funerário. Afinal, aquele lugar era agradável e bonito.

Consegui matar minhas horas, minha vontade de morrer, e a cerimônia de alguém que virá a morrer.

Agora fico pensando, se a faculdade não exigisse tantas horas extras, provavelmente eu ainda não teria conhecido o Sr. Yamasakhi e sua funerária, e não teria um de meus primeiros bens, que ironicamente e paradoxalmente, será meu último bem.


Maria Regina Veas é pedagoga.

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