Uma amiga norte-americana certa feita me contou que uma das perguntas que mais escutava no tempo em que viveu no Brasil dizia respeito à imagem que o país tinha em sua terra natal. Sua resposta costumava listar um punhado de características positivas, outro tanto de aspectos neutros e um tico de comentários negativos, notadamente sobre a desigualdade social e tudo que é afeto a essa. O mais curioso para si decorria do fato de que, mal chegava à última parte de seu discurso, ela era frequentemente interrompida por comentários que lhe soavam como envergonhados pedidos de desculpas.
Sua história me fez lembrar do tempo em que fiz intercâmbio na Europa, na época da faculdade. Vivendo entre intercambistas, com os quais as conversas fiadas quase sempre giravam em torno das particularidades nacionais, fui diversas vezes taxado de chatola, aquela figura desagradável que sempre falava mal do Brasil e contestava o ufanismo de outros brasileiros. Tendo exagerado ou não, meu alvo tinha foco: eram os clichês, os lugares-comuns de nossa identidade. Incomodavam-me as loas ao país tropical, bonito por natureza, onde em se plantando tudo dá; a vaidade da autoclassificação de povo alegre, festeiro e acolhedor; todo esse rap batido. Além disso, minhas intervenções tinham em muito a curiosidade de saber o quanto meus compatriotas acreditavam nas próprias palavras e o quanto certos comportamentos apresentados, reiterando o discurso do Brasil supimpa e do brasileiro bacana, tinham de conscientemente forjado.
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Vivendo entre intercambistas, com os quais as conversas
fiadas quase sempre giravam em torno das particularidades
nacionais, fui diversas vezes taxado de chatola, aquela figura
desagradável que sempre falava mal do Brasil e contestava
o ufanismo de outros brasileiros.
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A impressão que mantive com base nessas duas experiências foi a de que — em se considerando a grosseria argumentativa que é generalizar — os brasileiros da classe média não gostavam de mostrar seu(s) lado(s) obscuro(s). Sua crueldade, suas artimanhas, seus preconceitos. Por isso não foi sem grande surpresa que observei, boquiaberto, dois episódios que ocorreram este ano, os quais me proporcionaram outro olhar sobre o balaio de brasilidade que é oferecido à gringalhada.
O primeiro, menos grave mas de todo modo impactante, foi o coro bulinador que tomou o Maracanã, na final da Copa das Confederações, em seguida à expulsão do jogador espanhol Piquet. Gritos de “Chupa, Shakira!” ou piores acompanharam o namorado da cantora enquanto ele se retirava de campo. Confesso que na hora pensei que a explicação para essa travessura frente ao ilustre gringo associava o frisson do futebol ao conforto de estar em casa e ao espírito inflamado pelas manifestações que ocorriam paralelamente ao torneio. Que em outro contexto com oportunidade de atenção internacional se voltaria à cordialidade de sempre.
Então ocorreu no Ceará a vaia dos médicos brasileiros aos colegas cubanos, recém-chegados ao país. E, de novo, minha reação imediata foi a de justificá-la com base na preocupação que cria haver por parte de um segmento social de brasileiros no que diz respeito à imagem que esse sustenta de si perante estrangeiros. Pensei se a vaia aconteceu porque eram médicos latino-americanos, e não europeus ou estadunidenses. Se o conservadorismo e obtusão que assolam um número razoável de doutores (por falta de um pouco de Humanidades em seu currículo?), e que costumam ser causa da sustentação de clichês sobre o Brasil para estrangeiros, tinham suprimido o desejo de estar bem na fita internacional. Finalmente, pensei se a ideia da importância de boa impressão frente a estrangeiros era inválida para âmbitos em que não havia por que se envergonhar, como é o caso da formação médica nacional.
Essa reflexão me fez nos últimos dias reavaliar minha velha crença sobre a imagem que construímos de nós para fora. Essa é uma discussão que julgo importante, em se considerando que um dos aspectos formadores da identidade é a alteridade, isso é, o reconhecimento do que temos de igual ou de diferente perante o outro. No ponto aonde cheguei não há conclusões, apenas suspeitas. A primeira é a de que, na esteira de uma mudança pela qual o Brasil tem passado em suas relações internacionais, com elogios e olhares invejosos em um contexto de crise prolongada, deu ao brasileiro certa auto-confiança, que o permitiu se esconder menos. A segunda suspeita é a de que certo rancor que a classe média — a mesma que tradicionalmente viaja para o exterior e trava contato com estrangeiros — tem para com o governo petista, por causa da redução relativa de seus ganhos econômicos, fez com que essa adotasse a postura de vítima, uma que permite mesmo alguns comportamentos pouco civilizados, tidos como reação de quem é oprimido.
Seja o que for que esteja contecendo, desconfio de que as mudanças sociais e institucionais que estão acontecedendo e que continuarão a acontecer no Brasil e, por conseguinte, na identidade brasileira farão com que em breve não mais sejam ouvidos os velhos clichês quando calhar de um nacional médio ter de perorar sobre seu país para um estrangeiro. Com sorte, poderá apresentar seus lados bons e ruins sem vergonha de não estar à altura do gringo que o ouve. O que é ótimo, muito massa, mas que não me deixa de trazer antecipadamente certa nostalgia que, menos que com minhas intervenções da época universitária, tem a ver com a máxima de La Rochefoucauld que diz: “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.”
Breno Fernandes é escritor.
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