NO CAMINHO, ANDE


Cruze os andes e chegue ao Chile. Santiago do Chile. Passe um ou dois dias lá, de preferência um domingo. Ande de bicicleta no calor ou no frio. Pegue um voo para Calama. Pegue um transfer para São Pedro de Atacama. Hospede-se e alugue um carro. Melhor, alugue um carro em Calama. Melhor se não for de um rent-a-car mas de um taxista que acaba de conhecer, já que perdeu o transfer porque a organizadora do encontro de geologia que se inicia amanhã encontra um convidado americano e a conversa fica tão envolvente que o transfer parte sem vocês três. Pegue o carro por dias e viaje o deserto. Encontre, no caminho de volta dos Gêiseres, um grupo de vicunhas. Pare o carro, siga-as. Não esqueça de olhar as montanhas ao redor para se localizar. Você deve neste momento a oeste do Licancabur. Siga caminhando, e na segunda pequena montanha de areia lisa, você verá um rio e diversos lagos. As vicunhas vão para lá beber água. Você também. Seu coração está taquicardíaco por causa da altitude e sua cabeça dói. Beba água. Não se espete nas plantas que parecem inofensivas. Não afunde o pé na água que você pode congelá-lo em poucos passos quando o sol baixar. Use chapéu, o sol está a pino. Retorne, não subindo pelo mesmo caminho, mas contornando a montanha pelo lado do lago, o lago neste momento à sua direita, oposto ao vulcão que você vê somente quando sobe o morro ou se afasta dele. Veja por este caminho algo que te chame a atenção. Latas iguais, já bastante envelhecidas, enferrujadas, que se assemelham a latas de alimentos. Não há nada que ainda se possa ler, nem data nem local. Nada. Encontre aos poucos luvas verdes nos destroços. Partes de luvas verdes que num primeiro lance pareciam ser bexigas de borracha. Não as pegue. Pare, olhe atentamente. Tenha certeza que algo aconteceu a muitas pessoas ali. São muitas luvas. Não mexa nelas. Não pegue nem amasse as latas. Não fotografe. Siga caminhando. Escolha a história que irá contar quando finalmente chegar de volta ao carro, ou melhor, quando retornar à sua cidade. Não volte a caminhar sem antes mascar mais folhas de coca. Encontre a garrafa de água que deixou no início do caminho. Beba a água. Chore um pouco. Você está à 4000 metros do nível do mar.


Paula Scamparini é artista visual.

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